Outra Verdade Inconveniente

Em entrevista recente no programa Café com o Presidente da Agência Brasil o Presidente Lula mencionou que o Brasil deve priorizar as áreas já degradadas para a produção de biocombustíveis. O Presidente faz coro com sua Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que tem dito ser possível triplicar a produção na Amazônia sem derrubar uma árvore. O Programa Amazônia Sustentável trás essa premissa e até o Manifesto dos Artistas pela preservação da Amazônia faz referência ao assunto.

Entretanto, utilizar as áreas alteradas da Amazônia para produzir sem avançar sobre a floresta é “ilegal”. O Código Florestal brasileiro que estabelece os percentuais de Reserva Legal para a Amazônia é proibitivo. Se a redução do desmatamento de florestas amazônicas passa pela reinserção das áreas degradadas no processo produtivo, então o Código Florestal está atrapalhando esse objetivo.

O Código Florestal brasileiro estabelece que cada proprietário rural mantenha como Reserva Legal um percentual de sua propriedade. Na Amazônia esse percentual é de 80%. Na Reserva Legal não é permitido o corte raso, ou seja, não se pode retirar a floresta nativa. No caso da floresta nativa já ter sofrido o corte raso o proprietário está obrigado a recompô-la na forma da lei.

Isso significa que, a guisa de exemplo, quem tem uma propriedade de 1.000 ha na Amazônia e queira produzir biocombustível só poderá plantar em 200 ha, 20% da área. Os outros 800 ha deverão ser mantidos com a floresta nativa ou, caso não haja mais floresta nativa, o proprietário deverá reconstruí-la e não importa que talvez apenas Deus, em sua onipotência, seja capaz de fazê-lo. Dura lex, sed lex.

Essa restrição legal tem efeitos importantes no setor agrícola amazônida. Suponha por exemplo que para viabilizar economicamente uma usina de biodiesel sejam necessários 100.000 ha plantados com dendê. O empreendedor, além de fazer os investimentos normais no processo produtivo da usina e dos 100.000 ha de palma, teria que comprar mais 400.000 ha de terra para manter como Reserva Legal. Esse produtor necessitaria de 500.000 ha de terra onde produziria em 100.000 ha (20% da área) e manteria 400.000 ha como Reserva Legal (80% da área total).

Note o leitor que a área a ser mantida como Reserva Legal é quatro vezes maior do que a área produtiva e não traz nenhuma receita adicional. Imagine que a usina de biodiesel do exemplo acima, economicamente viável e competitiva sem a Reserva Legal — com 100.000 ha plantados mais a planta industrial — projete uma receita anual de, digamos, 10 milhões. Para obedecer ao Código Florestal e estar dentro da lei esses mesmos 10 milhões teriam que remunerar o capital investido não apenas na área cultivada e na planta industrial, mas também o capital investido na aquisição e na manutenção da Reserva Legal.

Como a Reserva Legal é muito maior do que a área útil do empreendimento, dependendo do preço da terra e do custo da “recomposição” da flora nativa, a quantidade de recurso financeiro necessária à Reserva Legal pode ser maior do que a quantidade necessária à parte produtiva do empreendimento. Isso implica na redução da rentabilidade final da usina. Quanto maior for o custo da Reserva Legal em relação ao custo do restante do empreendimento, menor será sua rentabilidade. A partir de um determinado limite, seguramente muito inferior a 80%, o custo da Reserva Legal faz com que o empreendimento como um todo passe a não ser lucrativo, ou seja, passa a dar prejuízo. Nesse casso, ninguém empreenderá ou, mais precisamente, ninguém empreenderá legalmente.

O mesmo raciocínio é válido para a pecuária intensiva, para a produção de grãos, para a produção de carvão vegetal e de madeira a partir reflorestamento com espécies exóticas. Em verdade, a necessidade de manter uma Reserva Legal tão grande inviabiliza economicamente qualquer empreendimento que precise de terra sem floresta na Amazônia.

Produzir carvão vegetal a partir de reflorestamento de eucalipto e sem trabalho análogo a escravidão no Pará, onde a Reserva Legal é de 80%, é inviável. Não é à toa que boa parte do carvão vegetal usado na produção de ferro gusa no Pará e no Maranhão tenha origem ilegal e também não é à toa que os reflorestamentos para a produção do carvão que abastecerá as guseiras do Pólo Carajás no futuro estejam sendo feitos no estado do Tocantins, onde a Reserva Legal é de 35%.

Outro exemplo? Existe tecnologia para transformar a pecuária extensiva da Amazônia, que precisa de mais de um hectare para criar um único boi, em uma forma intensiva de produção capaz de criar três bois por hectare de pasto. É o chamado Sistema de Pastejo Rotacionado Intensivo (SPRI) aperfeiçoado na EMBRAPA de Belém. É de onde vem a assertiva da Ministra Marina Silva de que é possível triplicar a produção na Amazônia sem derrubar uma árvore. Acontece que o sistema da EMBRPA também é inviabilizado pela Reserva Legal. O Banco da Amazônia dispõe de recursos para financiar a intensificação da pecuária, mas não pode fazê-lo porque os projetos — que devem estar dentro da lei — não apresentam taxas de retorno que possibilitem o pagamento dos empréstimos. Restrições semelhantes sofrem, a cana-de-açúcar, a soja e os grãos em geral, ainda que utilizem apenas áreas degradadas.

Investir legalmente na Amazônia é antieconômico, mesmo com tecnologias menos agressivas ao meio ambiente e mesmo em áreas já desmatadas. Se o fim do desmatamento passa pela reinserção dessas áreas no processo produtivo, ele também passa por uma revisão profunda do Código Florestal e da Reserva Legal. Por mais inconveniente e paradoxal que isso possa parecer.

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