Decifra-me ou te devoro |
No último dia 03 de julho, o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS) elegeu sua nova Comissão Executiva. O pecuarista Caio Penido assumiu a presidência do Grupo com mandato até 2021 e de sua gestão deve sair o futuro ou o ocaso do GTPS.
Penido é um dos herdeiros do Grupo Roncador, fundado por seu avô, Pelerson Soares Penido, nos anos 70 do século passado. Referência em pecuária no vale do rio Araguaia, em Mato Grosso, o grupo toca o ciclo completo na pecuária de corte, além de atividades em agricultura e mineração.
O GTPS, por seu turno, é um ajuntamento. Em 2009, depois que o Greenpeace divulgou um relatório midiático, recheado de meias verdades e mentiras completas sobre a pecuária brasileira, as grandes indústrias frigoríficas e as redes de varejo ligadas à indústria da carne foram implicadas pela ONG no lendário “desmatamento da Amazônia”. Por conta do relatório do Greenpeace, ninguém queria comprar carne brasileira, nem do Paraná distante milhas da Amazônia.
Ligeira, a turma da ONG holandesa usou os efeitos do relatório para exigir que as grandes indústrias frigoríficas do Brasil, na época, JBS, Marfrig, Minerva e Bertin , assinassem um compromisso público se negando a comprar gado da Amazônia se os vendedores não comprovassem lisura em relação ao lendário desmatamento da Amazônia.
A barafunda criada pelo Greenpeace ainda resultou numa tentativa frustrada do Ministério Público Federal de transferir do Ibama para os frigoríficos a responsabilidade pela fiscalização e coerção do desmatamento na Amazônia e numa outra ação, também frustrada, dos supermercados tentando certificar e fiscalizar a produção de carne nas fazendas dos outros.
Deste caos surgiu o GTPS. Uma mesa pretensamente redonda onde sentam as convicções inarredáveis de pecuaristas, frigoríficos, varejo de carne, restaurantes, ONGs ambientalistas, profissionais e bancos para buscar sustentabilidade na pecuária.
O surgimento do GTPS não foi um caso isolado. No início dos anos dois mil, pressionados por ONGs, agentes de outras cadeias produtivas também tomaram a inciativa de criar mesas pretensamente redondas.
O modus operandi era mais ou menos o mesmo: Ajuntava-se a turma toda num bando que se estapeava para definir critérios do que é um produto “sustentável”. Uma vez definido o que é sustentável, definia-se também, tacitamente, o que não era. Todos então se comprometiam a seguir o padrão que virava uma certificação e equivalia a uma bênção das ONGs. Quem alcançava o padrão poderia trabalhar em paz e quem não conseguia alcançar deixava de existir enquanto ser humano digno de direitos ou consideração moral.
O GTPS nasceu assim, mas tomou um rumo diferente depois dos primeiros “arranca rabos” interna corporis. Isso porque as outras mesas redondas escolheram definir como sustentável um produto produzido sem o lendário desmatamento.
Ocorre que os produtores rurais brasileiros têm o direito de utilizar parte dos seus imóveis ao mesmo tempo em que são obrigados a cumprir uma das leis de proteção ambiental mais rigorosas da galáxia. Ninguém aceita sangrar mais do que exige o Código Florestal.
Por via de consequência, ao invés do desmatamento zero, o GTPS escolheu definir como pecuária sustentável aquela que melhora seu sistema de produção de forma contínua nos três critérios imbricados no conceito de sustentabilidade: social, econômico e ambiental.
Para verificar essa tal melhoria contínua, o grupo definiu indicadores e preparou um guia destinado a orientar sobre boas práticas na pecuária. O pecuarista precisa preencher regularmente um formulário chamado Guia de Indicadores da Pecuária Sustentável (GIPS) de maneira que um sistema possa avaliar quem está melhorando a cada ano e quem não está.
Todas as outras mesas redondas que se estruturaram sobre o desmatamento zero zeraram-se a si mesmas. Ao desviar do desmatamento zero, o GTPS escapou do fim prematuro. Mas ao agarrar-se no preenchimento de um formulário, o GIPS, o grupo pode não ter ido muito longe.
Ninguém preencherá o GIPS
Isso porque ninguém preencherá o GIPS, muito menos regularmente. O produtor rural brasileiro tem um péssimo histórico relacionado ao fornecimento de informações sobre suas propriedades.
O cadastro de imóveis rurais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), por exemplo, serve apenas para orientar invasões de propriedade quando vazados por agentes públicos para movimentos sociais da sociedade civil paramilitar. É também usado como base para definir desapropriações para criação de assentamentos.
O cadastro de imóveis rurais da Receita Federal (Cafir) é outro exemplo. Não serve para absolutamente nada além de arrecadar o Imposto Territorial Rural. Até as Guias de Trânsito Animal (GTA), uma ferramenta até agora eficaz de controle sanitário do rebanho nacional, corre o risco de ser conspurcada em nome do Comando e Controle (Veja aqui).
Mas dentre todas, a pior experiência do produtor rural com o fornecimento de informações sobre seus imóveis foi com o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O setor rural foi amplamente contrário à inclusão do cadastro no texto do novo Código Florestal. Temiam, naquela época, que o cadastro fosse usado por ONGs ambientalistas para perseguir a produção rural brasileira. Temiam também problemas relacionados a informações estratégicas do agro como um todo e de (in)segurança privada dos imóveis em particular.
Foi preciso um longo processo de argumentação para que o setor rural aceitasse o CAR. A barreira só foi vencida quando o Ministério do Meio Ambiente aceitou incluir travas na legislação para evitar que o cadastro caísse nas mãos das ONGs.
Confiando que seus dados não seriam vazados, os produtores rurais não apenas aceitaram a inclusão do CAR no Código Florestal como povoaram o cadastro rapidamente declarando todas as informações ambientais dos seus imóveis. E o que foi que aconteceu?
Pressionado por organizações não governamentais, os ambientalistas governamentais no Ministério do ½ Ambiente publicaram ilegalmente o CAR na internet.
Já expliquei isso aqui no post: Nota explicativa: Divulgação dos dados do Cadastro Ambiental Rural foi ato ilegal
Sempre que os produtores rurais entregam informações sobre seus imóveis algo de ruim acontece. Quanto mais informações eles entregam, mais o MST invade, mais a Receita Federal arrecada, mais o Ibama persegue e mais as ONGs pressionam. Dentro do próprio GTPS paira um mal disfarçado sentimento (receio de uns e expectativa de outros) de que o GIPS se transforme numa ferramenta certificadora que excluirá produtores rurais do mercado ao invés de ser uma ferramenta de indução do comportamento sustentável.
O que Maria leva?
Além do risco de ser traído novamente perdendo acesso ao mercado de carne depois fornecer seus dados, o que mais o pecuarista ganha individualmente ao preencher o GIPS? Nada. Ou quase nada. Se espremer muito, o guia pode ser usado como orientador do progresso tecnológico de alguns imóveis, não muito mais do que isso.
O fato é que o GIPS jamais terá um grande alcance e sem um povoamento significativo do GIPS o GTPS esboroará. Eis o desafio do novo presidente do grupo.
Não é pouca coisa, mas a boa notícia é que existe saída. Embora não tenha sido pensado para este fim, os indicadores de pecuária sustentável podem servir como variáveis proxy que atestem a prestação de um serviço ambiental para o qual há valor de mercado.
A compreensão do conteúdo dessa última frase não é intuitiva, mas basta dizer que isso é condição necessária, mas não suficiente, para um programa de pagamento por serviços ambientais. Outra condição necessária, e também não suficiente, é o diálogo entre CONSUMIDORES de carne e de serviços ambientais ligados à carne e PRODUTORES da carne e de serviços de serviços ambientais ligados à carne. Outra condição necessária, e também não suficiente, é o engajamento dos elos intermediários da cadeia da carne. Todos esses grupos têm assento no GTPS.
Clique no play e veja a provocação deste post em outras palavras:
Na medida em que o produtor perceber que pode faturar mais recebendo pelos serviços ambientais que presta melhorando no GIPS, haverá um forte incentivo para que cada um busque a ferramenta e busque informação sobre como progredir nela. O pecuarista irá ao GIPS e não o contrário como se tenta fazer hoje.
Por outro lado, assim que o GIPS passar a funcionar como ferramenta indutora de comportamento correto atrelado a um instrumento econômico de gestão ambiental, reduzir-se-ão as condições para que os fetichistas da certificação utilizem a ferramenta como mais um meio de excluir produtores do mercado.
Não há ninguém no planeta melhor posicionado para conduzir a construção de um programa que remunere o pecuarista pelos serviços ambientais que presta à sociedade do que o novo presidente do GTPS.
Este blogger deseja muito boa sorte ao Sr. Caio Penido e ao GTPS.
“Informação publicada é informação pública. Porém, alguém trabalhou e se esforçou para que essa informação chegasse até você. Seja ético. Copiou? Informe e dê link para a fonte.”
Comentários
Gostei do conteúdo e da sua escrita bem como da explicação do cenário político do GTPS em relação às ONGs e demais membros. Falou também do trauma que é para o pecuarista fornecer informações e se ferrar. Tô chegando agora no blog e no ramo pecuária e me ajudou a comprender estas situações.
Sobre o GIPS e este constante avanço tecnológico da propriedade fiquei curiosos em saber mais. Também gostaria de entender melhir a saída econômica em se valorizar e pagar pelos "serviços ambientais" Quais são estes serviços? Proteção de nascentes, agro floresta, orgânicos etc? Daí eles poderiam ser monitora dos e remunerados?
Até
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