Em 2016, a modelo brasileira Gisele Bündchen sobrevoou a floresta amazônica com o chefe do Greenpeace Brasil como parte de uma série da National Geographic chamada “Vivendo perigosamente por anos”.
A princípio, eles sobrevoam uma floresta verde sem fim. "A beleza parece durar para sempre", diz Bündchen em sua narração, "mas então Adario [Paulo Adario, do Greenpeace] diz para eu me preparar."
Ela está horrorizada com o que vem a seguir. Abaixo dela, há fragmentos de floresta ao lado de fazendas de gado. "Todas essas grandes formas geométricas esculpidas na paisagem são por causa do gado?"
"Tudo começa com as estradas para transporte de madeira", explica Adario. "A estrada fica e o pecuarista chega e corta as árvores restantes."
“E o gado nem é natural da Amazônia!”, Diz Bündchen. "Nem deveria estar aqui!"
"Não, definitivamente não", confirma Adario.
"Imagine a destruição dessa bela floresta para produzir gado", diz ele. "Quando você come um hambúrguer, você se dá conta que ele está vindo da destruição da floresta amazônica."
Bündchen começa a chorar. "É chocante, não é?", diz Adario.
Mas é mesmo? Se for, isso significa que Bündchen choraria ainda mais ao sobrevoar a França e a Alemanha?
Afinal, esses dois países desmataram suas paisagens séculos atrás e tudo o que resta são fazendas e ranchos com muito menos áreas protegidas e fragmentos de floresta muito menores do que os que Bündchen observava na Amazônia.
Os alemães produzem quatro vezes mais emissão de carbono per capita, inclusive pela queima de biomassa, do que os brasileiros, e ainda assim não hesitam em repreender os brasileiros sobre a necessidade de parar o desmatamento e acabar com os incêndios.
"Gostaria de deixar uma mensagem para a querida [Primeira Ministra alemã] Angela Merkel", disse o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. “Pegue seu dinheiro e refloreste a Alemanha, ok? É muito mais necessário lá do que aqui. "
Uma resposta que os ambientalistas já deram há muito tempo do porquê os brasileiros não deveriam fazer o que europeus e norte-americanos fizeram é que a humanidade não pode sobreviver sem a Amazônia. Afinal, é um dos pulmões do mundo. É o que cria oxigênio.
Mas isso é "besteira", de acordo com o especialista em floresta amazônica Dan Nepstad, que foi o principal autor do relatório mais recente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas. A Amazônia usa tanto oxigênio quanto produz.
Veja também este artigo publicado por mim em 2010: Ambientalismo e Humanismo: o antagonismo insuspeito
O que realmente deve nos preocupar, dizem os cientistas, é todo o carbono armazenado na Amazônia. Se for liberado através de incêndios, na forma de dióxido de carbono, dizem eles, não poderemos impedir que as temperaturas globais subam dois graus centígrados acima dos níveis pré-industriais.
Mas dizer aos brasileiros que não devem desmatar a Amazônia por causa de seu papel de armazenar carbono apenas reforça a percepção de que a suposta preocupação da Europa com a Amazônia e as mudanças climáticas é realmente uma forma de neocolonialismo.
Agora que a Europa se desenvolveu através do desmatamento e uso de combustíveis fósseis, está dizendo ao Brasil para não se desenvolver através do desmatamento e uso de combustíveis fósseis.
Bolsonaro é a reação contra essa hipocrisia. O aumento do desmatamento em 2019 é, até certo ponto, Bolsonaro cumprindo uma promessa de campanha para agricultores que estavam “cansados da violência, recessão e dessa agenda ambiental”, disse Nepstad.
“Todos estavam dizendo: 'Sabe, é essa proposta ambiental que fará esse cara [Bolsonaro] ser eleito. Todos nós vamos votar nele. "E os agricultores votaram nele em massa".
"Eu vejo o que está acontecendo agora e a eleição de Bolsonaro como um reflexo dos principais erros na estratégia [ambientalista]", disse Nepstad.
Apenas alguns anos atrás, o esforço ambiental para salvar a Amazônia parecia estar indo bem. O desmatamento caiu 70% entre 2004 e 2012, em comparação com o período de 1996 a 2005.
Mas a recessão e a redução da aplicação da lei tiveram como resultado um novo aumento do desmatamento em 2013.
Perguntei a Nepstad quanto da reação atual se devia à aplicação das leis ambientais pelo governo brasileiro e quanto se devia à ONGs como o Greenpeace.
"Acho que a maior parte foi o dogmatismo das ONGs", disse ele. “Estávamos em um ambiente realmente interessante em 2012, 2013 e 2014, porque os agricultores ficaram satisfeitos com o artigo do Código Florestal dedicado a compensá-los, mas isso nunca aconteceu.”
"Começou com uma campanha do Greenpeace", disse Nepstad. “As pessoas se vestiam como galinhas e andavam por vários restaurantes do McDonald's na Europa. Foi um grande momento da mídia internacional.”
O Greenpeace, uma organização não governamental de US $ 350 milhões por ano, fortemente financiada por europeus, exigiu que os agricultores brasileiros cumprissem uma regulamentação muito mais rigorosa do que a imposta pelo governo brasileiro.
"O que os agricultores precisavam era basicamente anistia de todo o desmatamento ilegal até 2008", disse Nepstad. "E obtendo isso, para eles seria como 'Tudo bem, poderíamos cumprir esta lei.' Eu estou do lado dos agricultores neste ponto.
O Greenpeace buscou restrições mais rígidas para a floresta de savana, conhecida como Cerrado, onde grande parte da soja é cultivada.
“Os agricultores ficaram apreensivos de que seria outra moratória. O Cerrado corresponde a 60% da safra de soja do país. A Amazônia, a 10%. E isso foi um assunto muito mais sério.”
“O mentor da moratória da soja”, acrescentou Nepstad, “foi Paulo Adario, do Greenpeace Brasil” - o homem que fez Bündchen chorar.
O que aconteceu foi uma tragédia, na visão de Nepstad, porque os agricultores de soja estavam cada vez mais dispostos a cooperar com as restrições ambientais antes do Greenpeace começar a fazer exigências mais extremas.
"Existe essa confiança exagerada, essa arrogância, esse regulamento sobre regulamento, sem realmente pensar na perspectiva do agricultor", disse ele.
"Imagine ser um proprietário de terras na Califórnia e dizerem que você só pode usar metade de sua terra e depois, apenas 20%", disse Nepstad. "Eles disseram: 'Zero desmatamento ilegal, estamos de acordo com isso. Desmatamento zero? Não. Somente com compensação. ""
Grande parte da motivação para parar a agricultura e a pecuária é ideológica, disse Nepstad. "É realmente anti-desenvolvimento, você sabe, anti-capitalismo. Há muito ódio ao agronegócio. "
Ou pelo menos há ódio ao agronegócio no Brasil. O mesmo padrão não parece se aplicar ao agronegócio na França e na Alemanha.
Como tal, a agenda aparentemente ideológica do Greenpeace se encaixa perfeitamente na agenda dos agricultores europeus para excluir da União Européia alimentos brasileiros de menor custo.
"Os agricultores brasileiros querem estender [o acordo de livre comércio] UE-Mercosul, mas Macron está inclinado a cancelá-lo porque o setor agrícola francês não deseja que mais alimentos brasileiros entrem no país", explicou Nepstad.
As consequências ecológicas na Amazônia foram piores do que precisavam ser.
Ao exigir que os fazendeiros e agricultores deixassem de 50% a 80% da floresta intacta, os ambientalistas empurraram ranchos e fazendas mais a fundo na floresta. "Acho que o Código Florestal promoveu a fragmentação", disse Nepstad.
E a fragmentação é um grande perigo para espécies ameaçadas de extinção. Grandes felinos e outras espécies de grandes mamíferos precisam de um habitat contínuo e não fragmentado para sobreviver e prosperar.
Os conservacionistas deveriam ter permitido que os agricultores intensificassem a produção em algumas áreas, particularmente no Cerrado, para reduzir a pressão e a fragmentação de outras áreas, particularmente da floresta amazônica.
“Ainda não é tarde”, argumentou Nepstad, e diz que "diminuir as exigências em fazendas onde há alta eficiência e alta produtividade seria uma solução muito boa".
Nos EUA, fazendas mais produtivas no centro-oeste superaram as fazendas menos produtivas na Nova Inglaterra. Como resultado, houve um reflorestamento significativo na Nova Inglaterra.
Intensificar a produção em uma área mais produtiva e com menos biodiversidade como o Cerrado pode poupar a floresta na Amazônia. "Há uma enorme área de terras improdutivas que produz 50 quilos de carne bovina por hectare ao ano e gado magro", explica Nepstad, "tudo isso [esta área] deveria voltar para a floresta".
Em troca, outras terras devem ser abertas. "Vamos fazer com que as reservas da reforma agrária, que são enormes e próximas às cidades, cultivem legumes, frutas e alimentos básicos para as cidades amazônicas, ao invés de importar tomates e cenouras de São Paulo".
Nepstad me deixou mais esperançoso quanto às perspectivas realistas de ganho mútuo quando se trata de desenvolvimento econômico e conservação na Amazônia.
Mas também me deixou preocupado que forças poderosas como a União Européia, o Greenpeace e as celebridades mais famosas do mundo, auxiliadas pela mídia, mostrem poucos sinais de desistir de sua desumanização da Amazônia.
Superar essa percepção começa com a lembrança de que a Amazônia nunca foi o Éden. Contra a imagem de que não havia agricultura, os cientistas hoje acreditam que mais de dois milhões de pequenos agricultores viviam na bacia amazônica antes da chegada dos europeus no século XV e que eles tiveram um impacto muito maior alterando os ecossistemas do que se acreditava até agora.
Veja também: Vamos conversar sobre a independência da Amazônia?
Hoje os cientistas acreditam que “os primeiros agricultores da Amazônia usaram a terra intensivamente e expandiram os tipos de culturas cultivadas” e “aumentaram a quantidade de alimentos que cultivavam, melhorando o conteúdo de nutrientes do solo através das queimadas”.
É verdade que nem o gado nem os seres humanos são "naturais da Amazônia", como disse Bündchen. Mas então, eles também não são "naturais" de nenhum outro lugar que não seja a África. Mas isso não significa que eles não pertençam a tal lugar. Eles pertencem. E devemos começar a vê-los dessa forma.
Texto de Michael Shellenberger, vencedor do prêmio "Heroes of the Environment" (Heróis do Meio Ambiente) da revista Time e do prêmio Green Book (Livro Verde). Ele também é colaborador frequente do The New York Times, Washington Post, Wall Street Journal, Scientific American e outras publicações. Suas palestras no TED têm mais de 3 milhões de visualizações.
Artigo original em inglês: https://www.forbes.com/sites/michaelshellenberger/2019/08/28/how-the-eu-greenpeace-and-celebrities-dehumanize-the-amazon-and-worsen-fires-and-deforestation/amp/?__twitter_impression=true
Traduzido por: Júlio Cesar Peres
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