No afã de produzir as leis mais avançadas do mundo, o Brasil vive um terrível paradoxo. Na teoria, temos um país de padrão escandinavo. Na prática, setores inteiros da economia são jogados na ilegalidade. O agrônomo Proença: ele derrubará 4 000 macieiras para ficar de bem com a lei
Por Fabiane Stefano | 11.06.2009 | 00h01
Revista EXAME
Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito." A frase foi cunhada nos anos 40 pelo jurista francês Georges Ripert, célebre professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris. Mais de 60 anos depois, continua atualíssima, especialmente no Brasil. Nos últimos anos, o país tem se especializado em criar regras teoricamente moderníssimas - mas simplesmente incapazes de ser cumpridas. Inspiradas na realidade de países ricos - e, não raro, feitas para bater recordes mundiais de rigidez -, essas regras ignoram as peculiaridades de uma nação em desenvolvimento e de um capitalismo ainda jovem. O Brasil é dono de uma das mais duras legislações ambientais do mundo - e uma das mais impraticáveis. As regras trabalhistas contemplam todo tipo de direito ao empregado - e excluem cada vez mais gente do mercado de trabalho. Ao mesmo tempo que impõe leis draconianas às empresas, o Estado se exime de parte de sua responsabilidade. "O Brasil costuma copiar da legislação estrangeira apenas as obrigações da iniciativa privada, mas não replica aqui os deveres do Estado", diz o advogado Werner Grau, especialista em direito ambiental do escritório Pinheiro Neto, de São Paulo.
Uma legislação avançada e à frente de seu tempo pode ser útil para impulsionar novos hábitos e modernizar o país. Mas ela necessariamente exige o comprometimento de toda a sociedade: poder público, cidadãos e empresas. Quando recai apenas em um dos elos dessa corrente, costuma ser ignorada ou solenemente burlada. Tem-se, então, o pior dos mundos - um país dos fora da lei. Existe uma tênue fronteira entre a lei que funciona como motor do desenvolvimento e a regra que se transforma num peso. Em algumas situações, leis extremamente ambiciosas, em especial as que mexem com a atividade econômica, acabam criando mais problemas do que soluções. E aí está um dos principais riscos de ignorar a realidade. EXAME identificou três exemplos de leis que nasceram com propósitos nobres, são as mais rígidas do mundo, mas não apenas falharam em atingir seus objetivos como lançaram milhões na ilegalidade.
1. Código florestal, regras ambientais e indigenistas
O que a lei exige: Preservação e destinação de 71% do território nacional a minorias
O problema: Para cumpri-la, 16% da área de agropecuária do país teria de deixar de produzir. Só em São Paulo, o custo seria de 37 bilhões de reais
O agrônomo Sálvio Proença produz maçãs há 34 anos em São Joaquim, no interior de Santa Catarina. Na região de clima temperado e topografia montanhosa, Proença colhe todos os anos 2 000 toneladas da fruta na propriedade de 50 hectares. Ele e outros 2 200 agricultores desenvolveram em São Joaquim um bem-sucedido polo de exportação, baseado num modelo de produção em pequenas propriedades. Em 2008, a região faturou 40 milhões de dólares com a venda de maçãs para 88 países, entre eles Holanda e Itália. Na última década, porém, esses produtores foram se tornando paulatinamente ilegais aos olhos da Justiça. Novas regras ambientais, incorporadas ao Código Florestal de 1934, passaram a dificultar a vida deles e de muitos outros em todo o país. Hoje, 16 000 leis, resoluções, decretos e medidas provisórias regem o tema. "Se eu fosse seguir toda a legislação ambiental à risca, teria de preservar 60% de minha propriedade", diz Proença, que já assinou um termo de ajustamento de conduta e deverá eliminar 4 000 macieiras para recompor uma área de mata ciliar.
A Confederação Nacional da Agricultura calcula que 90% dos agricultores brasileiros não cumpram a legislação ambiental, seja porque já cultivavam as áreas antes das regras, seja porque não conseguem seguir a profusão de normas. O Ministério da Agricultura estima que mais de 1 milhão de pequenos agricultores seriam excluídos da atividade caso fossem obrigados a seguir o atual código. Um estudo da Embrapa mostrou que, segundo a legislação ambiental e indigenista, 71% do território nacional está destinado às minorias e à preservação ambiental. Ou seja, apenas 29% seriam passíveis de ocupação - incluindo as cidades e a infraestrutura de transportes. "Essas medidas colocam na ilegalidade grande parte da produção de arroz, uva, café, maçã, soja e pecuária no Brasil", diz Evaristo Miranda, coordenador da Embrapa Monitoramento por Satélite.
O cerne da discussão é a figura jurídica da reserva legal. O conceito surgiu no Código Florestal com o objetivo de evitar a exploração desordenada das florestas, então consideradas estoque de madeira - leia-se energia - para a industrialização incentivada por Getúlio Vargas. Hoje, a reserva legal se traduz na obrigação de preservar 80% da vegetação nativa na Amazônia, 35% no cerrado e 20% no restante do país. A essa determinação somam-se as áreas de preservação permanente (APPs), criadas para proteger margens de rios, encostas e topos de montanhas. Ao contrário da reserva legal, que acaba sendo uma ilha de vegetação nativa cercada por lavouras, a APP de fato serve para proteger mananciais e evitar a erosão. O problema é que esses parâmetros surgiram quando boa parte da agricultura brasileira já estava consolidada. E, pela legislação ambiental, o que está em desacordo deverá ser recomposto. A Confederação Nacional da Agricultura estima que 42 milhões de hectares, equivalentes a 16% do território ocupado pela agropecuária, teriam de deixar de produzir para atender à legislação. Os estados de São Paulo e Paraná seriam os mais atingidos. Em São Paulo, apenas o custo de transformar terras agrícolas em áreas de vegetação com espécies nativas é calculado em 37 bilhões de reais. A dificuldade de enquadramento é tamanha que até grandes grupos empresariais cuja bandeira é a sustentabilidade no agronegócio estão ilegais. O grupo Balbo, empresa paulista dona da marca Native, de açúcar orgânico e referência no setor, responde a 24 processos por falta de reserva legal e APPs.
Não é para menos que o setor agrícola se mobilizou para a criação de um novo código florestal. No Congresso, uma dezena de projetos de lei tramita paralelamente. Santa Catarina lançou um código estadual - muito mais tolerante que o federal - que provocou a ira do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O Ministério da Agricultura já desenhou um plano para diminuir os passivos ambientais e o ministro Reinhold Stephanes corre o Brasil para propagandeá-lo. A principal bandeira é que as áreas de preservação permanente sejam computadas como reserva legal - o que reduziria a necessidade de recomposição e beneficiaria o Sul e o Sudeste. Outra proposta permitiria aos produtores de um estado compensar o que falta de reserva legal em outro estado. Nessa briga, os ruralistas decidiram preservar a Amazônia - isto é, manter os 80% de preservação nas propriedades locais - para evitar uma repercussão negativa.
Enquanto o novo código não vem, o que vale é a legislação em vigor. "Quem não cumprir tem de pagar multa", diz Marcelo Goulart, promotor de meio ambiente e conflitos fundiários de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, que já ajuizou 123 processos contra usinas de açúcar e álcool. A legislação brasileira é considerada uma das mais rigorosas do mundo. Nos Estados Unidos, o produtor rural não é obrigado a reservar parte da propriedade para a preservação ambiental - isso cabe ao governo, via criação de parques nacionais. Em países da Europa, como a França, os produtores agrícolas também não são obrigados a manter reserva de mata legal - até porque a maior parte dos territórios já foi desmatada e ocupada. Para preservar ou expandir florestas, os governos dão incentivos. O Brasil é o único país que imputa ao dono da terra a obrigação e o custo de não produzir em parte dela.
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"Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito."
Georges Ripert
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Boa semana.
Por Fabiane Stefano | 11.06.2009 | 00h01
Revista EXAME
Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito." A frase foi cunhada nos anos 40 pelo jurista francês Georges Ripert, célebre professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris. Mais de 60 anos depois, continua atualíssima, especialmente no Brasil. Nos últimos anos, o país tem se especializado em criar regras teoricamente moderníssimas - mas simplesmente incapazes de ser cumpridas. Inspiradas na realidade de países ricos - e, não raro, feitas para bater recordes mundiais de rigidez -, essas regras ignoram as peculiaridades de uma nação em desenvolvimento e de um capitalismo ainda jovem. O Brasil é dono de uma das mais duras legislações ambientais do mundo - e uma das mais impraticáveis. As regras trabalhistas contemplam todo tipo de direito ao empregado - e excluem cada vez mais gente do mercado de trabalho. Ao mesmo tempo que impõe leis draconianas às empresas, o Estado se exime de parte de sua responsabilidade. "O Brasil costuma copiar da legislação estrangeira apenas as obrigações da iniciativa privada, mas não replica aqui os deveres do Estado", diz o advogado Werner Grau, especialista em direito ambiental do escritório Pinheiro Neto, de São Paulo.
Uma legislação avançada e à frente de seu tempo pode ser útil para impulsionar novos hábitos e modernizar o país. Mas ela necessariamente exige o comprometimento de toda a sociedade: poder público, cidadãos e empresas. Quando recai apenas em um dos elos dessa corrente, costuma ser ignorada ou solenemente burlada. Tem-se, então, o pior dos mundos - um país dos fora da lei. Existe uma tênue fronteira entre a lei que funciona como motor do desenvolvimento e a regra que se transforma num peso. Em algumas situações, leis extremamente ambiciosas, em especial as que mexem com a atividade econômica, acabam criando mais problemas do que soluções. E aí está um dos principais riscos de ignorar a realidade. EXAME identificou três exemplos de leis que nasceram com propósitos nobres, são as mais rígidas do mundo, mas não apenas falharam em atingir seus objetivos como lançaram milhões na ilegalidade.
1. Código florestal, regras ambientais e indigenistas
O que a lei exige: Preservação e destinação de 71% do território nacional a minorias
O problema: Para cumpri-la, 16% da área de agropecuária do país teria de deixar de produzir. Só em São Paulo, o custo seria de 37 bilhões de reais
O agrônomo Sálvio Proença produz maçãs há 34 anos em São Joaquim, no interior de Santa Catarina. Na região de clima temperado e topografia montanhosa, Proença colhe todos os anos 2 000 toneladas da fruta na propriedade de 50 hectares. Ele e outros 2 200 agricultores desenvolveram em São Joaquim um bem-sucedido polo de exportação, baseado num modelo de produção em pequenas propriedades. Em 2008, a região faturou 40 milhões de dólares com a venda de maçãs para 88 países, entre eles Holanda e Itália. Na última década, porém, esses produtores foram se tornando paulatinamente ilegais aos olhos da Justiça. Novas regras ambientais, incorporadas ao Código Florestal de 1934, passaram a dificultar a vida deles e de muitos outros em todo o país. Hoje, 16 000 leis, resoluções, decretos e medidas provisórias regem o tema. "Se eu fosse seguir toda a legislação ambiental à risca, teria de preservar 60% de minha propriedade", diz Proença, que já assinou um termo de ajustamento de conduta e deverá eliminar 4 000 macieiras para recompor uma área de mata ciliar.
A Confederação Nacional da Agricultura calcula que 90% dos agricultores brasileiros não cumpram a legislação ambiental, seja porque já cultivavam as áreas antes das regras, seja porque não conseguem seguir a profusão de normas. O Ministério da Agricultura estima que mais de 1 milhão de pequenos agricultores seriam excluídos da atividade caso fossem obrigados a seguir o atual código. Um estudo da Embrapa mostrou que, segundo a legislação ambiental e indigenista, 71% do território nacional está destinado às minorias e à preservação ambiental. Ou seja, apenas 29% seriam passíveis de ocupação - incluindo as cidades e a infraestrutura de transportes. "Essas medidas colocam na ilegalidade grande parte da produção de arroz, uva, café, maçã, soja e pecuária no Brasil", diz Evaristo Miranda, coordenador da Embrapa Monitoramento por Satélite.
O cerne da discussão é a figura jurídica da reserva legal. O conceito surgiu no Código Florestal com o objetivo de evitar a exploração desordenada das florestas, então consideradas estoque de madeira - leia-se energia - para a industrialização incentivada por Getúlio Vargas. Hoje, a reserva legal se traduz na obrigação de preservar 80% da vegetação nativa na Amazônia, 35% no cerrado e 20% no restante do país. A essa determinação somam-se as áreas de preservação permanente (APPs), criadas para proteger margens de rios, encostas e topos de montanhas. Ao contrário da reserva legal, que acaba sendo uma ilha de vegetação nativa cercada por lavouras, a APP de fato serve para proteger mananciais e evitar a erosão. O problema é que esses parâmetros surgiram quando boa parte da agricultura brasileira já estava consolidada. E, pela legislação ambiental, o que está em desacordo deverá ser recomposto. A Confederação Nacional da Agricultura estima que 42 milhões de hectares, equivalentes a 16% do território ocupado pela agropecuária, teriam de deixar de produzir para atender à legislação. Os estados de São Paulo e Paraná seriam os mais atingidos. Em São Paulo, apenas o custo de transformar terras agrícolas em áreas de vegetação com espécies nativas é calculado em 37 bilhões de reais. A dificuldade de enquadramento é tamanha que até grandes grupos empresariais cuja bandeira é a sustentabilidade no agronegócio estão ilegais. O grupo Balbo, empresa paulista dona da marca Native, de açúcar orgânico e referência no setor, responde a 24 processos por falta de reserva legal e APPs.
Não é para menos que o setor agrícola se mobilizou para a criação de um novo código florestal. No Congresso, uma dezena de projetos de lei tramita paralelamente. Santa Catarina lançou um código estadual - muito mais tolerante que o federal - que provocou a ira do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O Ministério da Agricultura já desenhou um plano para diminuir os passivos ambientais e o ministro Reinhold Stephanes corre o Brasil para propagandeá-lo. A principal bandeira é que as áreas de preservação permanente sejam computadas como reserva legal - o que reduziria a necessidade de recomposição e beneficiaria o Sul e o Sudeste. Outra proposta permitiria aos produtores de um estado compensar o que falta de reserva legal em outro estado. Nessa briga, os ruralistas decidiram preservar a Amazônia - isto é, manter os 80% de preservação nas propriedades locais - para evitar uma repercussão negativa.
Enquanto o novo código não vem, o que vale é a legislação em vigor. "Quem não cumprir tem de pagar multa", diz Marcelo Goulart, promotor de meio ambiente e conflitos fundiários de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, que já ajuizou 123 processos contra usinas de açúcar e álcool. A legislação brasileira é considerada uma das mais rigorosas do mundo. Nos Estados Unidos, o produtor rural não é obrigado a reservar parte da propriedade para a preservação ambiental - isso cabe ao governo, via criação de parques nacionais. Em países da Europa, como a França, os produtores agrícolas também não são obrigados a manter reserva de mata legal - até porque a maior parte dos territórios já foi desmatada e ocupada. Para preservar ou expandir florestas, os governos dão incentivos. O Brasil é o único país que imputa ao dono da terra a obrigação e o custo de não produzir em parte dela.
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"Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito."
Georges Ripert
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Boa semana.
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