O inferno ainda é verde


Prostrado diante dos dois filhos agonizantes, Antonio da Rocha se descobre só. Sua brasilidade é de papel. À beira de um rio da Amazônia, ele está à margem da Constituição.

É assim que a jornalista Eliane Brum inicia a sua coluna desta semana na Revista Época. Sem importar se é realidade ou ficção, a estória que ela relata é uma história que a Amazônia gostaria de ter deixada para trás. E que bate de frente com o sonho de uma natureza benévola.

A tristeza de um pai que vê o filho morrer porque o seu povo não tem acesso a serviços médicos que se encontram facilmente em aglomerações urbanas de pequeno porte é a essência da idéia de inferno verde. A natureza não ataca o homem porque quer destruí-lo: ela segue o seu ritmo, natural, nem bom nem mal. O homem é que precisa enfrentar a realidade. Se não quer morrer nos dentes de uma cobra, precisa seguir o exemplo de sociedades que reduziram a níveis baixíssimos os riscos de mortes não naturais.

Isso significa eliminar quaisquer vestígios de natureza, e viver em um ambiente praticamente destituído de matas e animais selvagens? Não necessariamente. Mas também não significa manter comunidades de 30, 50, 100 habitantes isoladas a centenas de quilômetros de distância dos lugares onde existem as fundamentais infraestruturas de saúde e educação.

A preservação da floresta pristina com o mínimo de homem possível, como querem muitos imaturos, é a manutenção do mundo retratado por Eliane, em que “não morrer é um golpe de sorte”. Esperar que o Brasil pague para que “os protetores da Terra do Meio” continuem vivendo como vivem, isolados, sem produzir grande coisa que interesse ao resto do mundo, é utopia sem sentido. Cada comunidade, cada povo, cada sociedade, tem de se superar cotidianamente para construir coisas que interessem aos outros, e com isso poder adquirir as coisas que os outros produziram e que permitem que não morrer não seja um golpe de sorte.

Os outros, neste caso, são os médicos, enfermeiras e professores que moram em Belém, Porto Velho, Cuiabá, e que simplesmente não querem abandonar as benesses de suas vidas urbanas para ir morar na floresta.

Sonhar é fácil. Difícil é encarar a realidade de um sem número de comunidades isoladas que não conseguem educar as suas crias porque os professores não chegam lá. Difícil é aceitar que o contribuinte brasileiro, ao ter de optar entre financiar um hospital para uma vila de mil habitantes ou financiar um hospital para 35 pessoas a um custo cinco vezes maior, irá optar pela primeira opção. Difícil é admitir que eu e você não estamos dispostos a passar alguns anos de nossas vidas vivendo em uma comunidade isolada na floresta amazônica para ajudar “os protetores da Terra do Meio” a continuar protegendo a terra do meio.

Há postos de saúde na Terra do Meio, três, construídos por meio de um termo de cooperação entre o Instituto Socioambiental(ISA) e a prefeitura de Altamira. Mas estão vazios. Não há auxiliares de enfermagem, nem equipamentos ou remédios, não há nada nem ninguém. A explicação da prefeitura à imprensa é que não consegue gente qualificada para trabalhar porque a Norte Energia, responsável por Belo Monte, oferece salários muito mais altos, a do governo do estado do Pará é de que essa assistência é atribuição da prefeitura e a do governo federal é de que repassou recursos à prefeitura.

O economista Danilo Igliori fez tese de doutorado na Universidade de Cambridge sobre a relação entre efeitos positivos e negativos de aglomerações humanas na Amazônia. Fazendo as contas ele concluiu que, pelo menos no início do processo de aglomeração, os efeitos positivos (econômicos) superam os negativos (de degradação ambiental). Mais tarde, há um ponto em que esse cenário se inverte. Mas com certeza a comunidade do Sr. Antonio da Rocha ainda tem um longo percurso a percorrer até chegar no ponto de inflexão encontrado por Igliori.

Reduzir o papel do fator sorte na determinação das chances de sobrevivência do homem na floresta significa romper com o modelo autárquico das comunidades isoladas. Os jesuítas foram talvez os primeiros a enfrentar esse dilema ético em nosso país: para aprender com os índios, precisariam antes desenvolver uma língua comum; para ensinar aos índios, teriam inevitavelmente de lhes transmitir os valores ibéricos. Em qualquer dos casos, precisariam romper o isolamento dos nossos aborígenes e forçar uma síntese luso-tupiniquim que permitisse a ambos ir adiante.

Aprender com os índios. Permitir que os índios aprendam conosco. Aí estão os princípios fundamentais de um modelo de desenvolvimento que consiga lidar com o problema descrito por Eliane Brum.

Comentários

Luiz Prado disse…
Qualquer um que já andou pelo interior da Amazônia sabe o quanto são raras as pessoas que não querem ter maiores contatos com a civilização ou dispensem serviços básicos como saúde e telecomunicações. Encontrei um caminhoneiro que estava na fila de um hospital de Manaus para um transplante de fígado. E aí? No lugar onde ele morava com a família não havia telefonia convencional e ele passava boa parte do tempo sem sinal de celular. Que acredita nessa história de "povos da floresta", nos dias de hoje, a não ser londrinos que tomam o chá das 5 lendo o Financial Times e meia dúzia de artistas globais?
Luiz Prado disse…
PS - Não temos mais para aprender com os índios brasileiros do que com os descendentes de Maias, Aztecas, Incas, ou com o Grécia clássica e com o Egito antigo. Essa turma de hippies fora de época que fica sonhando em voltar para a vida "simples" da floresta bem que podia começar a fazê-lo mudando-se para morar em reservas indígenas. Tenho um sobrinho que até tantou, por uns meses, queria aprender música indígena. Quando conseguiu sair de lá, ficou feliz diante de uma imensa bacalhoada num restaurante português.