A fazenda que desapareceu do mapa, por Carlos Drummond de Andrade

Às vezes me assalta o remorso de, sendo filho, neto e bisneto de fazendeiros, ter contribuído para que morresse a nossa fazenda. No momento em que chegou a minha vez de trabalho no campo, fugi da responsabilidade, alegando falta de jeito para lidar com a terra e com os animais. Cedi a minha parte e fui cuidar de nuvens, no exercício da literatura. Passaram-se os tempos, e a fazenda acabou vendida a uma empresa estatal, que ali instalou uma represa para depósito de rejeito do minério de ferro por ela explorado. Assim terminou, submersa, a Fazenda do Pontal, antiga dos Doze Vinténs, ou Fazenda dos Doze.

Lembro-me de sua descrição, feita no começo deste século, bastante enfática (voz do dono...): “Compreende uma área de 200 alqueires em campos de ótima qualidade, com pastagens de capim-gordura e grande parte de capim-jaguará. Os 100 alqueires restantes acham-se ainda em matas e capoeiras de superior qualidade para cultura, contendo grande quantidade de madeira de lei. Existem 20.000 pés de café, ocupando uma área de 5 alqueires. A propriedade acha-se em parte fechada a valo, tendo diversos apartadores. É servida por excelentes aguadas, movendo a mais alta um engenho de serrar madeira, e a outra, igualmente abundante, um engenho de socar café e um moinho”.

E continua a apresentação:

“A casa de vivenda é magnífica, sendo um sobrado de 60 palmos de frente por 40 de fundo, com dois andares na frente e três no fundo, todo forrado e assoalhado com tábuas. Os cômodos são amplos e arejados, com janelas envidraçadas, portais e portas pintados a óleo, sendo as paredes e os cômodos superiores forrados a papel”.

Não tinha o luxo de orgulhosas fazendas de café da província do Rio de Janeiro, em que se podia admirar pinturas artísticas e alfaias importadas da Europa. Mas era casarão bastante confortável, bem diferente das tristes moradas de fazendeiro de Minas Gerais no começo do século 19, visitadas por Saint-Hilaire, com certa “miserável choupana construída sem a menor arte, e onde não se encontrava outro mobiliário além de uma mesa e mesquinhos bancos”. Proprietários antigos habitavam cômodos mais ou menos iguais aos de seus trabalhadores escravos, e o único objeto, entre decorativo e útil, neles observado pelo futuro marechal-de-campo Cunha Matos, em 1823, foi o chifre de veado servindo de cabide para arreios e espingardas.

Péssimo descendente de senhores da terra, não cheguei a morar no Pontal, pois a família já se instalara na cidade, a três quartos de légua (não se falava em quilômetros). Era fácil chegar até lá, mesmo a pé, para um dia de prazer campestre. Na caminhada, passava-se a certa distância de um matagal onde o eco repercutia os gritos da meninada. Não me saiu da memória aquele rumor soturno e misterioso, que provocávamos.

Na fazenda, a incapacidade de assimilar os interesses da vida rural fazia de mim um exilado que preferia isolar-se na copoa de uma jabuticabeira para, em posição bastante insegura, regalar-me com as frutinhas, ao mesmo tempo em que lia velhas revistas encontradas no escritório do sobrado. A extensa variedade de assuntos relacionados com a vida dos bois, cavalos, porcos, galinhas e patos, das pacas e capivaras encontráveis nos longes da fazenda, bem como os cuidados com as épocas do plantio e colheita do milho, o desenvolvimento da lavoura de café, as frutas silvestres que constituíam a mais imprevista merenda – nada disso empolgava o garoto citadino, que buscava na irrealidade da cisma outros motivos de fascinação.

Hoje que tantos sóis já são passados, e não é mais hora de retocar a vida, sinto falta do que não tive ou perdi por debilidade minha, e chego a considerar-me fazendeiro do ar, porque é no ar que diviso minha boiada, separando gado de leite e gado de corte (reservado ao matadouro), minhas plantações, meus perdigueiros, minhas botas, estribos, selas e rédeas de campear – os mesmos atributos que faziam o orgulho singelo de meu pai, afeiçoado geneticamente à terra e emprenhado em transmiti-la aos filhos e netos, em obediência ao estatuto familiar.

Minha geração assistiu ao final do processo de dissolução da propriedade rural, patrimônio tradicional de clãs, em troca de uma industrialização e uma urbanização que aumentaram o número de pobres e só distribuíram felicidade a pouca gente. Passo os olhos pelo Brasil de hoje e não encontro nele traços daquele antigo “país essencialmente agrícola”, como o qualificava a frase feita dos primeiros anos da República. Ao lado de empreendimentos rurais de envergadura, controlados por empresas de vultosa expressão econômica (e política), faliram ou passaram adiante seus bens os antigos fazendeiros que alimentavam o país com seu trabalho suado, nada ou mal assistidos pelos órgãos oficiais.

Fala-se muito em dar prioridade à agricultura, nos planos de ação governamental, mas resta apurar até que ponto as palavras correspondem aos atos. Numa época de “pensar grande”, talvez não se dê a devida atenção à média e à pequena propriedade, que constituem o núcleo fundamental da vida pastoril e agrícola brasileira. Quanta gente desistiu de cultivar o solo por falta de condições mínimas de financiamento e escoamento da produção? Por outra causa não desapareceu a bonita Fazenda do Pontal, além da falta de estímulo à atividade no campo. Afinal, meu remorso é infundado. Não dependeria de mim a sorte de uma entre tantas fazendas condenadas à morte pelo chamado desenvolvimento.

Texto publicado originalmente na edição nº 1 de Revista Globo Rural, em 1985.

Veja também:

"O Boi", por Machado de Assis Crônica publicada no Correio Carioca, em 1876.O boi, substantivo masculino, com que nós...

Posted by Código Florestal on Segunda, 9 de novembro de 2015

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