A votação do Código Florestal e o princípio da precaução

Por Evaristo Miranda e José Maria da CostaJosé Maria da Costa

O parto difícil do novo Código Florestal

O Ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, em palestra proferida em São Paulo, no início de março deste ano, previu uma enxurrada de ações judiciais com a aprovação do novo Código Florestal. A razão principal é simples: dezenas de milhões de hectares de terras agrícolas, ocupadas em sua imensa maioria de acordo com as exigências para o desmatamento da legislação de seu tempo, ficarão na ilegalidade. Milhões de hectares de cultivos, pomares, florestas plantadas e pastagens deverão ser arrancados para cumprir a nova legislação.

A proposta do novo Código Florestal, tanto a votada originalmente na Câmara dos Deputados, como a aprovada pelo Senado, equaciona em parte a questão da exigência de Reserva Legal nas propriedades rurais. Mas o projeto agrava, e muito, a situação das atividades agrossilvipastoris praticadas nas chamadas Áreas de Preservação Permanente, colocando na ilegalidade cerca de cinco milhões de produtores rurais. Daí a previsão meteorológica do Ministro Marco Aurélio de uma "enxurrada de ações judiciais", fundadas no direito adquirido, na irretroatividade da lei, no direito de propriedade, etc.

Os problemas atuais de ordenamento territorial e de uso legal das terras no Brasil são o resultado de um processo, por cujo intermédio, nos últimos anos, um número significativo de áreas foi destinado à proteção ambiental e ao uso exclusivo de algumas populações, enquanto uma série de medidas legais restringiu severamente a possibilidade de remoção da vegetação natural, exigindo sua recomposição e o fim das atividades agrícolas intensivas nessas áreas, mesmo se exploradas há séculos.

Legalidade e legitimidade no uso das terras

No final do século passado, por iniciativa do Executivo (por meio de medidas provisórias e decretos), surgiram os conceitos de Reserva Legal (RL) e de Áreas de Preservação Permanente (APPs), verdadeiras exclusividades de nossa legislação, que muitos consideram a mais avançada do mundo em matéria ambiental.

A legislação define, como Reserva Legal, uma porcentagem da área da propriedade rural, entre 20 e 80%, que deve permanecer recoberta por vegetação natural, por ser considerada necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas. Além disso, as Áreas de Preservação Permanente, cobertas ou não por vegetação nativa, têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, de proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. Ou seja, o agricultor brasileiro foi designado como responsável por garantir todas essas funções ecológicas, geológicas, genéticas, ambientais e sociais, por meio de sua propriedade rural e em sua propriedade rural, assumindo todos os ônus daí decorrentes. Não é pouco.

Assim, a partir de meados da segunda metade do século passado, foram consideradas APPs: (i) as faixas marginais dos rios, riachos, córregos, lagos, lagoas e reservatórios de água artificiais; (ii) as encostas de morros e áreas declivosas; (iii) os manguezais, as restingas, as nascentes e olhos d’água; (iv) os locais de reprodução de espécies da fauna selvagem; (v) diversas outras situações. Em contraposição ao que assim se fixou, é de se dizer que a ocupação agrossilvipastoril de muitos desses locais já ocorrera bem antes da invenção das APPs, ao longo da história do Brasil.

Ao se entender que as definições de APPs aplicavam-se não apenas às áreas futuras a serem ocupadas pela agricultura, mas também às ocupações tradicionais, milhões de agricultores e um número enorme de cadeias produtivas foram colocados na ilegalidade.

Ficaram na ilegalidade, por estarem em áreas consideradas de preservação permanente, em que pese à legitimidade histórica da atividade produtiva, (i) a rizicultura de várzea no RS, SP e MA, (ii) a criação de búfalos nas várzeas do AP, AM e PA, (iii) o plantio de café em áreas de relevo da BA, MG, SP e PR, (iv) os reflorestamentos em áreas de declive em SP, RJ, MG, ES e TO, (v) o plantio de macieiras em SC, (vi) a vitivinicultura em SP, SC e RS, (vii) toda a pecuária tradicional no Pantanal, considerado integralmente como uma APP, (viii) a pecuária leiteira e a pecuária de corte nas serras e regiões montanhosas em SP, MG, ES e NE, (ix) a cana de açúcar em várias situações topográficas em SP, RJ e, sobretudo, no NE, (x) parte da citricultura na BA, SE e SP, (xi) os pequenos ruminantes de criação extensiva no semiárido nordestino, (xii) as instalações para criação de suínos e aves em SC, MG, PR e SP, (xiii) os projetos de irrigação no NE, SU e SE, (xiv) a produção de flores no CE, MG e SP, (xv) o plantio de tabaco em SC e BA, (xvi) o cultivo de milho e de feijão em quase todo Brasil, além de diversas outras atividades agrícolas.

A consolidação não consolidada das APPs no Código Florestal

Na versão do Código Florestal aprovada na Câmara, as atividades agropecuárias desenvolvidas até 2008 em APPs seriam consolidadas, com a proibição de novos desmatamentos. O Senado manteve essa consolidação no "caput" do artigo 62: "Nas Áreas de Preservação Permanente é autorizada, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008."

A questão estaria resolvida, se o mesmo Senado não impusesse, nos parágrafos desse artigo, outras condições: os agricultores devem arrancar cultivos e pomares, retirar o gado e recuperar a vegetação nativa em faixas de 15 a 500 metros de cada lado dos rios e riachos. O que se dá com uma das mãos, retira-se com a outra.

Ao longo de toda a rede hidrográfica dos rios de Mato Grosso, São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina, da Amazônia e do Nordeste, isso pode representar a perda de mais da metade das áreas produtivas. Para quem têm diversos riachos na propriedade, isso pode inviabilizar toda a sua produção e o futuro da propriedade. Metade dos 40.000 hectares de plantios de banana no vale do Ribeira, em São Paulo, estarão na ilegalidade e deverão ser arrancados. É também o caso dos projetos de irrigação instalados ao lado dos rios, frutos de enormes investimentos públicos e privados, os quais deverão ser desativados.

Um dirigente do Ministério do Meio Ambiente estimou que a agricultura perderá 33 milhões de hectares. Para outros técnicos, seriam 60 milhões de hectares. As consequências sociais e econômicas precisam ser avaliadas, mesmo que alguns ambientalistas defendam o que chamam de desantropização das áreas agrícolas, principalmente na Amazônia.

O drama de milhões de pequenos agricultores

Estudos da Embrapa indicam, com base no Censo Agropecuário do IBGE, que, quanto menor a propriedade rural, pior sua situação. Os pequenos utilizam a totalidade das terras para produzir e sobreviver. Para a Lei 8.629/93, pequenas propriedades são imóveis entre um e quatro Módulos Fiscais (MFs), e a dimensão destes é definida pelo INCRA para cada município.

É certo que, em parte do Brasil, o projeto do Senado propõe que essa perda de terras produtivas se limite ao máximo de 20% da propriedade com menos de 4MFs. Ora, ao longo dos rios estão os terrenos mais férteis. Na maioria dos casos, esses 20% de terras férteis garantem de 50 a 80% da renda do produtor, como ocorre ao longo do Rio São Francisco e no entorno de milhares de açudes e barragens do Nordeste brasileiro.

Uma pesquisa da Embrapa Gestão Territorial verificou, com base no INCRA e no Censo Agropecuário do IBGE de 2006, que os imóveis com até quatro MFs constituem 89% dos estabelecimentos agropecuários do país, ocupam 11% do território e contribuem com 50% da produção agropecuária. E o Ministério do Meio Ambiente defende a retirada da agricultura das APPs, mas não quer dimensionar o alcance social e econômico dessa medida em seu potencial de "desantropização".

O princípio da precaução

A regularização das atividades agrossilvipastoris até 2008 em APPs dará segurança jurídica aos agricultores. A proposta do Código Florestal elaborada pelo relator Deputado Paulo Piau, para ir à votação na Câmara dos Deputados, apresenta um surpreendente nível de consenso de 95% com o texto do Senado. Sua versão conteria cerca de 540 itens entre artigos, incisos e parágrafos, contra 571 da versão aprovada no Senado Federal. Desse total, cerca de 510 itens (95%) foram aprovados pelas duas Casas.

Nesse contexto de aparente consenso, qual a razão de tanto conflito? Por que a Ministra Isabela Teixeira e outros ambientalistas não aceitam o que chamam de "desfiguração do Código aprovado no Senado"? A questão principal está nas atividades agrícolas consolidadas em APPs.

Até a figura da Reserva Legal reconhece diferenças entre biomas. As APPs não. Para seus dispositivos, o Brasil inteiro é uma coisa só. Exigir, porém, a mesma faixa de vegetação para um riacho intermitente na caatinga, ou que desce encachoeirado a Serra do Mar, ou que escoa quase imperceptível como um arroio pela pampa gaúcha, ou que forma um pequeno igarapé na Amazônia, é ignorar a diversidade do meio ambiente no Brasil. Cada bioma pede critérios específicos para o regime de uso e proteção de suas APPs. E os Estados devem participar da avaliação e do esforço para recompor as APPs de forma adequada, considerando a ocupação das terras, as tecnologias empregadas e o contexto morfopedológico. Recompor sim, mas recompor bem.

O próprio princípio da precaução, tão invocado em outras situações, sugere que o Governo avalie a situação das APPs ocupadas de longa data, para só depois propor sua recuperação, com critérios técnicos, onde for necessária, por meio de programas bem organizados de assistência técnica aos pequenos agricultores. Se não for assim, na enxurrada futura de ações judiciais, talvez só reste aos advogados invocar a legislação de proteção da fauna selvagem em prol da defesa dos agricultores, estes, sim, desantropizados e ameaçados de extinção.

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* Evaristo Eduardo de Miranda é doutor em ecologia, pesquisador da Embrapa

** José Maria da Costa é advogado e magistrado aposentado. Doutorando e mestre em direito pela PUC-SP

Comentários

ruy edson disse…
Isso é o cerne da questão toda: que se aplique para o imóvel a lei vigente na época de sua primeira matrícula, ou a lei posterior mais favorável ao dono do imóvel. Sem retroatividade. Isto é o óbvio e o justo.