Comida sem ideologia
Por Xico Graziano.
Artigo Publicado originalmente no Jornal O Estado de São Paulo.
O colapso do comunismo arrasou a produção agrícola da antiga União Soviética. O campo empobreceu-se e a região passou a importar comida. Passadas duas décadas, ocorreu uma reviravolta. Agora, daquelas terras advêm 15% das exportações globais de grãos alimentícios. E vai melhorar.
Sem mágica. O fenômeno econômico contou com o apoio do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd). Países como a Rússia, a Ucrânia e o Casaquistão passaram a receber investimentos de grandes empresas europeias que, prejudicadas com a crise em sua origem, se tornaram ávidas por novos negócios. Acabaram encontrando, não muito distantes, fartas terras de excelente qualidade, ociosas e baratas, com mão de obra disponível ao lado. Aquecida pela Ásia, a demanda mundial de produtos agrícolas abriu a janela de oportunidade para soerguer o combalido Leste Europeu.
Essa revolução produtiva nos territórios desorganizados pelo fracasso comunista mereceu um encontro de negócios, realizado na Turquia, no início de setembro. Dele participaram executivos de empresas particulares e de instituições públicas interessados na dinamização da Europa, como o Berd e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Seus dirigentes, entusiasmados com os resultados verificados na reunião, redigiram um artigo, de enorme repercussão, publicado na edição europeia do Wall Street Journal (Leia aqui a íntegra em inglês).
No texto, José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, e Suma Chakrabarti, presidente do Berd, destacaram a importância das "dinâmicas e eficientes empresas privadas que transformaram aqueles países, após o fracasso de suas fazendas coletivas, em gigantescos exportadores de grãos". Reconheceram a realidade. Disseram mais. Afirmaram os dois altos dirigentes internacionais que "a verdade, simples, é que o mundo precisa de mais comida, e isso significa mais produção".
Tomando como base os resultados positivos verificados no Leste Europeu, a FAO e o Berd recomendaram que os países emergentes da Europa, da Ásia e do Norte da África, como também os do Ocidente, fortaleçam o papel do setor empresarial na segurança alimentar global. Adotando políticas econômicas corretas, os investimentos privados conseguirão, nas palavras deles, "fecundar a terra", tornando mais fácil a vida para os famintos do mundo.
Tudo tão óbvio. Mas a mensagem desagradou profundamente à Via Campesina, organização articulada pelo MST e seus assemelhados mundo afora. Autoproclamados defensores dos camponeses, escreveram uma nota dizendo ter recebido "com indignação e medo" o artigo conjunto do diretor-geral da FAO e do presidente do Berd. E arremataram: "O que a agricultura e o planeta necessitam atualmente é justamente o contrário do que foi proposto pelos senhores Graziano da Silva e Chakrabarti". Caramba (Veja a nota do MST).
Qual o motivo da polêmica? A preservação do modo de vida camponês.
Acredita a Via Campesina que somente os pequenos produtores rurais - apelidados no Brasil de "agricultores familiares" - sejam capazes de alimentar a humanidade. Argumenta ainda que o avanço da produção capitalista no campo - o chamado "agronegócio" - tem aumentado a pobreza no mundo, destruindo a capacidade de emprego, e provocado a crise alimentar das últimas décadas. Só tragédia. Conclusão: apoiar as empresas europeias, em sua expansão para o leste, significa exterminar a agricultura camponesa, promovendo o pior.
O assunto ganhou destaque na imprensa nacional pelo fato de o diretor-geral da FAO, o agrônomo brasileiro José Graziano, ser um conhecido petista, dileto amigo, e ex-ministro do Programa Fome Zero, do Lula. Para o MST, ele cometeu uma heresia ideológica, algo como uma capitulação ao grande capital. Em outras palavras, se você é, ou se julga, da "esquerda", está impedido de reconhecer a vantagem da produção empresarial, integrada e tecnológica, no campo. Precisa continuar amarrado ao passado, louvando os pobres camponeses, mesmo que isso signifique baixa produtividade e vida miserável. Coisa medieval.
Age corretamente quem se preocupa com os agricultores familiares. Despreparados, fracos financeiramente, nem sempre eles acompanham o ritmo empreendedor das novas tecnologias agrícolas. Acabam ficando para trás no processo de desenvolvimento. Por isso cabe aos governos propiciar condições adequadas de competitividade aos pequenos do campo. No Brasil, graças ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), lançado no governo de Fernando Henrique Cardoso, grupos importantes de produtores obtiveram, com o tempo, ganhos tecnológicos significativos. Conquistaram, geralmente integrados às grandes cooperativas, vantagens econômicas. Subiram na vida.
Comida não tem ideologia. Os estudos da FAO estimam que até 2050 a demanda mundial por alimentos aumentará, no mínimo, 60%, bem acima do crescimento populacional. Será puxado o consumo popular pelo processo de urbanização e pelo ganho de renda das famílias pobres. Sem forte aumento na oferta de alimentos, destacando-se as proteicas carnes, haverá elevação dos preços internacionais da comida. Ocorrerá, por consequência, piora nas restrições alimentares no mundo, que hoje atingem 1 bilhão de pessoas.
Cantava Cazuza: "A tua piscina está cheia de ratos/ tuas ideias não correspondem aos fatos". A contemporaneidade observada nos territórios agrícolas da ex-União Soviética assemelha-se à transformação cultural e produtiva da China. Cuba também não escapa do desiderato. Com sua atrasada ideologia, a Via Campesina/MST condena os agricultores à pobreza.
Para destrinchar de vez a polêmica talvez fosse o caso de perguntar aos próprios camponeses russos qual caminho preferem. Alguém duvida da resposta?
Xico Graziano é Agrônomo, foi Secretáriod e Agricultura e Secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo. É primo do Zé Graziano, predidente da FAO.
Outro texto publicado no Estadão sobre a polêmica:
Apetites maniqueístas
Por José de Souza Martins
Texto publicado originalmente no Estadão
Às fomes antagônicas do MST e do diretor da FAO contrapõe-se uma terceira: a da menina sudanesa fotografada enquanto um abutre ao lado esperava sua morte
Na perspectiva maniqueísta que domina hoje as formas vulgares do pensamento social existe a fome da esquerda e existe a fome da direita. Na esquerda, a fome se mata com reforma agrária e preservação de costumes agrícolas tradicionais das populações camponesas, verdadeiro capital cultural que a Revolução Verde jogou no lixo. Na direita, a fome se mata com o agronegócio, a concentração da propriedade e a modernização tecnológica da agricultura em grande escala, substituindo trabalhador por máquina, fertilizante e agrotóxico. Na esquerda, a agricultura familiar mata a fome dos famintos. Na direita, a agricultura extensa mata antes a fome do mercado. É possível estender a ladainha por um grande número de itens comparativos sem saciar a fome política de nenhum dos dois grupos nem, principalmente, fazer com que o pão nosso de cada dia chegue de fato ao prato raso dos famélicos da terra.
A polarização retornou à pauta dos assuntos pendentes no correr dessa semana. O MST, e o grupo de entidades que em torno dele se articula, soltou um manifesto em que questiona, com indignação e medo, dizem, artigo publicado no Wall Street Journal por José Graziano da Silva (o brasileiro que é diretor-geral da FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e Suma Chakrabarti (o indiano que é presidente do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento). O artigo tem o título provocativo de Fome por Investimento e o subtítulo, mais provocativo ainda, de O Setor Privado Pode Dirigir o Desenvolvimento Agrícola em Países que mais o Necessitam. Provocativo para quem vê o assunto da perspectiva do calor úmido de um barraco de acampamento de sem-terra, mas que de fato não lê o Wall Street Journal senão através de intermediários que não passam necessariamente fome. No entanto, desafiador e instigante para quem vê o assunto com óculos de cifrões no conforto de um escritório bem mobiliado e ar condicionado de Wall Street.
Quem lê o manifesto do MST tem a impressão de que, em Roma, o petista José Graziano não tem outra coisa a fazer senão maquinar a demolição das propostas ideológicas da entidade que o julgava amigo, o que ele é. Quem lê o artigo publicado no jornal das altas finanças internacionais tem a impressão de que o intuito de seus autores é bem outro: o interlocutor não é o MST nem o MST está nos horizontes de quem publica artigo nas páginas especializadas em economia do Wall Street Journal.
A comparação entre os dois documentos mostra claramente que Graziano e Chakrabarti falam de uma coisa e o MST fala de outra. O medo do MST é a subjacente doutrina do favorecimento do agronegócio na ocupação das terras agrícolas do mundo. O medo de Graziano e Chakrabarti é o de que as urgências das crises internacionais, provocadas pelo capital especulativo, minimizem ainda mais a FAO e seu já claudicante papel no desenvolvimento econômico. Se há tensão política nas crises tópicas recentes na Europa, há também tensão política na crise crônica das populações agrícolas, em especial no Terceiro Mundo.
A terceira via de Graziano e Chakrabarti é, sem dúvida, a de atrair o grande capital para a agricultura nos países que dispõem de extensos territórios férteis em desuso ou usados em cultivos arcaicos e ineficientes. O apelo dos dois autores, tendo em conta os poderes que representam, se baseia no primado da produtividade lucrativa. Por essa via, haveria produção, exportação, emprego. Haveria, também, melhora nas condições de vida dos agricultores. Como tudo que se orienta para a terceira via, o artigo é confuso e escamoteia questões essenciais. A camisa de 11 varas de Graziano já ficara exposta na entrevista que deu à revista alemã Der Spiegel, em 16 de janeiro. Acossado pelas jornalistas, que trataram com sarcasmo suas ideias para resolver o problema da fome no mundo, confrontando-as com as objeções do agronegócio, reconheceu que o problema da fome muito deve à interferência especulativa do capital financeiro no comércio de commodities.
Tanto no documento do MST quanto no artigo de Graziano e Chakrabarti a disputa é quanto à propriedade dos meios de produção na agricultura: a família agrícola ou o agronegócio. A fome é aí uma fome puramente teórica. É, pois, na mesma lógica econômica que das incongruências do artigo de Graziano e Chakrabarti se dá conta o MST, quando questiona: "Não mencionam em momento algum que as cifras oficiais mostram que nos três países mencionados (Rússia, Ucrânia e Casaquistão) a produtividade é muito mais alta nas terras em mãos de camponeses que naquelas em mãos do agronegócio". Portanto, os verdadeiros personagens do triunfo agrícola não são os mencionados e cortejados pelos autores do artigo. Mas se poderia dizer, também, que a fome que os preocupa e preocupa o MST não é a mesma daquela menininha sudanesa, faminta, fotografada em 1993 por Kevin Karter (Prêmio Pulitzer), enquanto um abutre ao seu lado esperava o momento de saciar a própria fome.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor do livro Reforma Agrária: O Diálogo Impossível.
Por Xico Graziano.
Artigo Publicado originalmente no Jornal O Estado de São Paulo.
O colapso do comunismo arrasou a produção agrícola da antiga União Soviética. O campo empobreceu-se e a região passou a importar comida. Passadas duas décadas, ocorreu uma reviravolta. Agora, daquelas terras advêm 15% das exportações globais de grãos alimentícios. E vai melhorar.
Sem mágica. O fenômeno econômico contou com o apoio do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd). Países como a Rússia, a Ucrânia e o Casaquistão passaram a receber investimentos de grandes empresas europeias que, prejudicadas com a crise em sua origem, se tornaram ávidas por novos negócios. Acabaram encontrando, não muito distantes, fartas terras de excelente qualidade, ociosas e baratas, com mão de obra disponível ao lado. Aquecida pela Ásia, a demanda mundial de produtos agrícolas abriu a janela de oportunidade para soerguer o combalido Leste Europeu.
Essa revolução produtiva nos territórios desorganizados pelo fracasso comunista mereceu um encontro de negócios, realizado na Turquia, no início de setembro. Dele participaram executivos de empresas particulares e de instituições públicas interessados na dinamização da Europa, como o Berd e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Seus dirigentes, entusiasmados com os resultados verificados na reunião, redigiram um artigo, de enorme repercussão, publicado na edição europeia do Wall Street Journal (Leia aqui a íntegra em inglês).
No texto, José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, e Suma Chakrabarti, presidente do Berd, destacaram a importância das "dinâmicas e eficientes empresas privadas que transformaram aqueles países, após o fracasso de suas fazendas coletivas, em gigantescos exportadores de grãos". Reconheceram a realidade. Disseram mais. Afirmaram os dois altos dirigentes internacionais que "a verdade, simples, é que o mundo precisa de mais comida, e isso significa mais produção".
Tomando como base os resultados positivos verificados no Leste Europeu, a FAO e o Berd recomendaram que os países emergentes da Europa, da Ásia e do Norte da África, como também os do Ocidente, fortaleçam o papel do setor empresarial na segurança alimentar global. Adotando políticas econômicas corretas, os investimentos privados conseguirão, nas palavras deles, "fecundar a terra", tornando mais fácil a vida para os famintos do mundo.
Tudo tão óbvio. Mas a mensagem desagradou profundamente à Via Campesina, organização articulada pelo MST e seus assemelhados mundo afora. Autoproclamados defensores dos camponeses, escreveram uma nota dizendo ter recebido "com indignação e medo" o artigo conjunto do diretor-geral da FAO e do presidente do Berd. E arremataram: "O que a agricultura e o planeta necessitam atualmente é justamente o contrário do que foi proposto pelos senhores Graziano da Silva e Chakrabarti". Caramba (Veja a nota do MST).
Qual o motivo da polêmica? A preservação do modo de vida camponês.
Acredita a Via Campesina que somente os pequenos produtores rurais - apelidados no Brasil de "agricultores familiares" - sejam capazes de alimentar a humanidade. Argumenta ainda que o avanço da produção capitalista no campo - o chamado "agronegócio" - tem aumentado a pobreza no mundo, destruindo a capacidade de emprego, e provocado a crise alimentar das últimas décadas. Só tragédia. Conclusão: apoiar as empresas europeias, em sua expansão para o leste, significa exterminar a agricultura camponesa, promovendo o pior.
O assunto ganhou destaque na imprensa nacional pelo fato de o diretor-geral da FAO, o agrônomo brasileiro José Graziano, ser um conhecido petista, dileto amigo, e ex-ministro do Programa Fome Zero, do Lula. Para o MST, ele cometeu uma heresia ideológica, algo como uma capitulação ao grande capital. Em outras palavras, se você é, ou se julga, da "esquerda", está impedido de reconhecer a vantagem da produção empresarial, integrada e tecnológica, no campo. Precisa continuar amarrado ao passado, louvando os pobres camponeses, mesmo que isso signifique baixa produtividade e vida miserável. Coisa medieval.
Age corretamente quem se preocupa com os agricultores familiares. Despreparados, fracos financeiramente, nem sempre eles acompanham o ritmo empreendedor das novas tecnologias agrícolas. Acabam ficando para trás no processo de desenvolvimento. Por isso cabe aos governos propiciar condições adequadas de competitividade aos pequenos do campo. No Brasil, graças ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), lançado no governo de Fernando Henrique Cardoso, grupos importantes de produtores obtiveram, com o tempo, ganhos tecnológicos significativos. Conquistaram, geralmente integrados às grandes cooperativas, vantagens econômicas. Subiram na vida.
Comida não tem ideologia. Os estudos da FAO estimam que até 2050 a demanda mundial por alimentos aumentará, no mínimo, 60%, bem acima do crescimento populacional. Será puxado o consumo popular pelo processo de urbanização e pelo ganho de renda das famílias pobres. Sem forte aumento na oferta de alimentos, destacando-se as proteicas carnes, haverá elevação dos preços internacionais da comida. Ocorrerá, por consequência, piora nas restrições alimentares no mundo, que hoje atingem 1 bilhão de pessoas.
Cantava Cazuza: "A tua piscina está cheia de ratos/ tuas ideias não correspondem aos fatos". A contemporaneidade observada nos territórios agrícolas da ex-União Soviética assemelha-se à transformação cultural e produtiva da China. Cuba também não escapa do desiderato. Com sua atrasada ideologia, a Via Campesina/MST condena os agricultores à pobreza.
Para destrinchar de vez a polêmica talvez fosse o caso de perguntar aos próprios camponeses russos qual caminho preferem. Alguém duvida da resposta?
Xico Graziano é Agrônomo, foi Secretáriod e Agricultura e Secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo. É primo do Zé Graziano, predidente da FAO.
Outro texto publicado no Estadão sobre a polêmica:
Apetites maniqueístas
Por José de Souza Martins
Texto publicado originalmente no Estadão
Às fomes antagônicas do MST e do diretor da FAO contrapõe-se uma terceira: a da menina sudanesa fotografada enquanto um abutre ao lado esperava sua morte
Na perspectiva maniqueísta que domina hoje as formas vulgares do pensamento social existe a fome da esquerda e existe a fome da direita. Na esquerda, a fome se mata com reforma agrária e preservação de costumes agrícolas tradicionais das populações camponesas, verdadeiro capital cultural que a Revolução Verde jogou no lixo. Na direita, a fome se mata com o agronegócio, a concentração da propriedade e a modernização tecnológica da agricultura em grande escala, substituindo trabalhador por máquina, fertilizante e agrotóxico. Na esquerda, a agricultura familiar mata a fome dos famintos. Na direita, a agricultura extensa mata antes a fome do mercado. É possível estender a ladainha por um grande número de itens comparativos sem saciar a fome política de nenhum dos dois grupos nem, principalmente, fazer com que o pão nosso de cada dia chegue de fato ao prato raso dos famélicos da terra.
A polarização retornou à pauta dos assuntos pendentes no correr dessa semana. O MST, e o grupo de entidades que em torno dele se articula, soltou um manifesto em que questiona, com indignação e medo, dizem, artigo publicado no Wall Street Journal por José Graziano da Silva (o brasileiro que é diretor-geral da FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e Suma Chakrabarti (o indiano que é presidente do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento). O artigo tem o título provocativo de Fome por Investimento e o subtítulo, mais provocativo ainda, de O Setor Privado Pode Dirigir o Desenvolvimento Agrícola em Países que mais o Necessitam. Provocativo para quem vê o assunto da perspectiva do calor úmido de um barraco de acampamento de sem-terra, mas que de fato não lê o Wall Street Journal senão através de intermediários que não passam necessariamente fome. No entanto, desafiador e instigante para quem vê o assunto com óculos de cifrões no conforto de um escritório bem mobiliado e ar condicionado de Wall Street.
Quem lê o manifesto do MST tem a impressão de que, em Roma, o petista José Graziano não tem outra coisa a fazer senão maquinar a demolição das propostas ideológicas da entidade que o julgava amigo, o que ele é. Quem lê o artigo publicado no jornal das altas finanças internacionais tem a impressão de que o intuito de seus autores é bem outro: o interlocutor não é o MST nem o MST está nos horizontes de quem publica artigo nas páginas especializadas em economia do Wall Street Journal.
A comparação entre os dois documentos mostra claramente que Graziano e Chakrabarti falam de uma coisa e o MST fala de outra. O medo do MST é a subjacente doutrina do favorecimento do agronegócio na ocupação das terras agrícolas do mundo. O medo de Graziano e Chakrabarti é o de que as urgências das crises internacionais, provocadas pelo capital especulativo, minimizem ainda mais a FAO e seu já claudicante papel no desenvolvimento econômico. Se há tensão política nas crises tópicas recentes na Europa, há também tensão política na crise crônica das populações agrícolas, em especial no Terceiro Mundo.
A terceira via de Graziano e Chakrabarti é, sem dúvida, a de atrair o grande capital para a agricultura nos países que dispõem de extensos territórios férteis em desuso ou usados em cultivos arcaicos e ineficientes. O apelo dos dois autores, tendo em conta os poderes que representam, se baseia no primado da produtividade lucrativa. Por essa via, haveria produção, exportação, emprego. Haveria, também, melhora nas condições de vida dos agricultores. Como tudo que se orienta para a terceira via, o artigo é confuso e escamoteia questões essenciais. A camisa de 11 varas de Graziano já ficara exposta na entrevista que deu à revista alemã Der Spiegel, em 16 de janeiro. Acossado pelas jornalistas, que trataram com sarcasmo suas ideias para resolver o problema da fome no mundo, confrontando-as com as objeções do agronegócio, reconheceu que o problema da fome muito deve à interferência especulativa do capital financeiro no comércio de commodities.
Tanto no documento do MST quanto no artigo de Graziano e Chakrabarti a disputa é quanto à propriedade dos meios de produção na agricultura: a família agrícola ou o agronegócio. A fome é aí uma fome puramente teórica. É, pois, na mesma lógica econômica que das incongruências do artigo de Graziano e Chakrabarti se dá conta o MST, quando questiona: "Não mencionam em momento algum que as cifras oficiais mostram que nos três países mencionados (Rússia, Ucrânia e Casaquistão) a produtividade é muito mais alta nas terras em mãos de camponeses que naquelas em mãos do agronegócio". Portanto, os verdadeiros personagens do triunfo agrícola não são os mencionados e cortejados pelos autores do artigo. Mas se poderia dizer, também, que a fome que os preocupa e preocupa o MST não é a mesma daquela menininha sudanesa, faminta, fotografada em 1993 por Kevin Karter (Prêmio Pulitzer), enquanto um abutre ao seu lado esperava o momento de saciar a própria fome.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor do livro Reforma Agrária: O Diálogo Impossível.
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