Amazônia, conhecemo-la aos fragmentos


“Amazônia, ainda sob o aspecto estritamente físico, conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um século de perseverantes pesquisas, e uma literatura inestimável, de numerosas monografias, mostram-no-la sob incontáveis aspectos parcelados. O espírito humano, deparando o maior dos problemas fisiográficos, e versando-o, tem se atido a um processo obrigatoriamente analítico, que se, por um lado, é o único apto a facultar elementos seguros determinantes de um síntese ulterior, por outro, impossibilita o descortino desafogado do conjunto. [...] Lemo-los; instruímo-nos; edificamo-nos; apercebemo-nos de rigorosos ensinamentos quanto às infinitas faces, particularíssimas, da terra; e, à medida que a distinguimos melhor, vai-se-nos turvando, mais e mais, o conspecto da fisionomia geral.

No Amazonas acontece, de feito, hoje, esta cruel antilogia: sobre a terra farta e a crescer na plenitude risonha da sua vida, agita-se, miseravelmente, uma sociedade que está morrendo...

Ademais, o nosso conceito crítico é de si mesmo instável e as suas atuais sentenças transitórias. Antes de o exercitar em trabalhos desta espécie, cuja aparência anômala lhes advém de uma profunda originalidade, cumpre-nos não esquecer o falso e o incaracterístico da nossa estrutura mental, onde, sobretudo, preponderam reagentes alheios ao gênio da nossa raça. Pensamos demasiado em francês, em alemão, ou mesmo em português. Vivemos em pleno colonato espiritual, quase um século após a autonomia política. Desde a construção das frases ao seriar das idéias, respeitamos em excesso os preceitos das culturas exóticas, que nos deslumbram – e formamos singulares estados de consciência, a priori, cegos aos quadros reais da nossa vida, por maneira que o próprio caráter desaparece-nos, folheado de outros atributos, que lhe truncam, ou amortecem, as arestas originárias.

O que se diz escritor, entre nós, não é um espírito a robustecer-se ante a sugestão vivificante dos materiais objetivos, que o rodeiam, senão a inteligência, que se desnatura numa dissimulação sistematizada. Institui-se uma sorte de mimetismo psíquico nessa covardia de nos forrarmos, pela semelhança externa, aos povos que nos intimida e nos encantam. De modo que, versando as nossas coisas, nos salteia o preconceito de sermos o menos brasileiro que nos for possível. E traduzimo-nos, eruditamente em português, deslembrando-nos que o nosso orgulho máximo devera consistir em que ao português lhe custasse o traduzir-nos, lendo-nos na mesma língua.
De qualquer modo, é tempo de nos emanciparmos.

Nas ciências, mercê de seus reflexos filosóficos superiores estabelecendo a solidariedade e harmonia universais do espírito humano, compreende-se que nos dobremos a todos os influxos estranhos.

Mas nenhum mestre, além das nossas fronteiras, nos alentará a impressão artística, ou poderá sequer interpretá-la. A frase impecável de Renan, que esculpiu a face convulsiva do gnóstico, não nos desenharia o caucheiro; a concisão lapidária de Herculano depereceria, inexpressiva, na desordem majestosa do Amazonas.
Para os novos quadros e os novos dramas, que se nos antolham, um novo estilo, embora o não reputemos impecável nas suas inevitáveis ousadias.

É uma grande voz, pairando, comovida e vingadora, sobre o inferno florido dos seringais, que as matas opulentas engrinaldam e traiçoeiramente matizam das cores ilusórias da esperança...”


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O que se lê acima são trechos de um dos mais fascinantes textos que eu já lí sobre a Amazônia. Escrito a mais de um século e atualíssimo. O autor é Euclides da Cunha.

Hoje completa-se 100 anos do assassinato de Euclides. Publico aqui uma homenagem a um homem, um grande e talentoso brasileiro, que, para escrever e opinar sobre a Amazônia, veio até ela aprender.

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