No dia 24 de novembro de 1976, um jornal novaiorquino passou a previsão do tempo logo após apresentar uma notícia sobre o estupro de uma menina de cinco anos de idade. Ao cortar a transmissão ao vivo para o homem do tempo, o apresentador, Tex Antoine, emendou a notícia do estupro com a seguinte frase: "With rape so predominant in the news lately, it is well to remember the words of Confucius: 'If rape is inevitable, lie back and enjoy it.'". Mal traduzido Antoine disse o seguinte: "Com estupros tão recorrentes no noticiários hoje em dia, é bom relembrar as palavras de Confuncio: "Se o estupro é inevitável, deite-se e aproveite".
Tex Antoine, a cavalgadura, foi demitido dias depois, mas imortalizou a frase que adquiriu outras formas em diversas partes do mundo. No Brasil, depois de burilada por Paulo Maluf e pela sexóloga Marta Suplicy, a frase foi sintetizada para "Se o estupro é inevitável, relaxa e goza". É um absurdo engraçadinho.
Hoje um grupo de 11 entidades representantes do setor rural, as maiores, a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Abracelpa), Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Associação das Empresas de Biotecnologia na Agricultura e Agroindústria (Agrobio), Associação dos Produtores de Soja e Milho do Matogrosso (Aprosoja), Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), União das Indústrias de Cana de Açúcar (Unica) e União Brasileira de Avicultura (Ubabef), subscreveram e apresentaram um documento à Presidente da República sugerindo a contabilização das florestas em terras privadas, as Reservas Legais e as Áreas de Preservação Permanente previstas no Código Florestal, nas metas internacionais de preservação de biodiversidade assumidas pelo Governo Brasileiro em convenções internacionais.
Apenas as florestas preservadas em unidades de conservação públicas (UCs) e terras indígenas contam para as metas de preservação de biodiversidade assumidas internacionalmente para o Brasil. Apenas o decreto de criação é suficiente, não sendo necessária a implantação de facto da unidade. O papel basta. Isso cria uma pressão para que o Governo crie UCs na base do canetaço, sem aportar recursos para sua efetivação e gerando problemas medonhos para os produtores rurais na área das novas UCs.
Por outro lado, os milhares de hectares de florestas hoje existentes em terras privadas, nas RLs e APPs, a maioria dos quais comporta florestas cuja biodiversidade é tão importante quanto qualquer outra e cuja preservação é obrigatória, não contam como área preservada na meta. O documento das entidades pede ao Governo que inclua as florestas privadas no cômputo de áreas preservadas que compõem a meta brasileira de biodiversidade. A ideia é reduzir a pressão pela criação indiscriminada de UCs ao mesmo tempo em que empresta alguma importância prática às RLs e APPs.
A construção do documento foi articulada pelo pessoal do Icone, um dos signatários, com o auxílio da ONG interacional The Nature Conservancy (TNC). Logo depois que o documento foi divulgado à imprensa, o WWF anunciou a proposta como "uma saída para o Código Florestal". Eis o inusitado: ONGs ambientalistas internacionais e o setor rural unidos em torno de uma proposta. Todo mundo é a favor. Menos eu.
Embora alguns ambientalistas cuspam na minha cara a acusação de trabalhar para ruralista, como se isso fosse imoral, não guerreio essa guerra por soldo. Guerreio por princípios. Dentre eles, talvez o que me seja mais caro, seja a imoralidade, o erro, da imposição da preservação de florestas em terras privadas. Sou convicto de que os benefícios da preservação florestal são grandes demais e baratos demais para serem privados. Preservação de florestas, e suas consequências ambientais, são bens da sociedade que o Estado, por sua natureza, deve prover ao cidadão.
Na minha concepção de mundo APP tem que ter a largura necessária à eficaz preservação do manancial hídrico. Se essa largura inviabilizar o modo de vida de alguém, o Estado deve retirá-lo de lá garantido ao mesmo tempo seus direitos básicos e a preservação da APP; e Reserva Legal tem que ser Zero.
Não estou dizendo com isso que os produtores rurais devam ser autorizados a desmatar suas florestas. Estou dizendo apenas que preservação florestal é função do Estado e que função de produtor rural é produzir da forma mais amigável ao ambiente possível, economizando adubo e defensivos, conservando solo, incrementando tecnologia, maximizando produtividade e minimizando perdas. Esse é o mundo pelo qual luto.
Anos atrás, numa noite quente de verão amazônico, em Belém, contei esses dois últimos parágrafos ao Deputado Aldo Rebelo enquanto bebericávamos caipirokas de açaí depois de uma das muitas palestras que o Deputado fez Brasil a fora. Ele se virou pra mim com um semblante tranquilo naquela cara de pai que ele tem e disse: "Mas ninguém concorda com você".
Era verdade e naquela noite eu me senti meio como hoje, mas permaneci forte porque é natural que o setor rural brasileiro, tendo convivido com códigos florestais que impõem preservação de florestas em terras privadas por quase um século, tenha se habituado ao conceito. É como um boi velho de engenho que depois de aposentado, sai sozinho do pasto todo dia no mesmo horário e vai rodar em volta da moenda. A besta miserável não sabe fazer outra coisa, nunca fez outra coisa na vida. Girar em volta da moenda é a vida.
Ainda no período colonial, José Bonifácio de Andrada e Silva, redigiu uma sugestão aos legisladores da Corôa que estabelecessem no Brasil a figura das reservas privadas ordenando que um sexto de cada sesmaria permanecesse florestado. "Em todas as vendas que se fizerem e sesmarias que se derem se porá a condição, que os donos e sesmeiros reservem para matos e arvoredos a 6ª parte do terreno, que nunca poderá ser derrubada e queimada sem que se fação novas plantações de bosques, para que nunca faltem as lenhas e madeiras necessárias", escreveu Bonifácio nas recomendações que fez à Coroa (Leia a integra do documento original). Embora a sugestão de Bonifácio jamais tenha virado lei, ele é tido como pai da ideia.
A preservação de florestas em terras privadas nasceu com o primeiro Código Florestal, em 1934. Naquele momento o Brasil se movia a lenha. Não existiam fogões a gás, não haviam ferros elétricos, não haviam caminhões à diesel. As roupas eram engomadas com ferros em que se que se colocava madeira em brasa dentro e que tinham uma janelinha que as mulheres abriam para soprar e reavivar a brasa aquecendo o ferro. Tenho um ferro desses em casa. Comprei em um mercado que não os vendia como bibelôs. Também os pães deles de cada dia, àquela época, eram assados em fornos a lenha. Os almoços e jantares de todos os brasileiros eram cozidos em fogões a lenha. O café, que sustentava a economia, se movia do interior de São Paulo e do Paraná até o porto de Santos em trens que se moviam a lenha. Do porto de Santos, o café ganhava o mundo em navios que se moviam a lenha. A medida em que o suprimento de lenha, que era transportado do mato às casas nos lombos de burros ou em carroças, se afastava das cidades o preço subia e o Estado sofria pressão para regular o fornecimento. Carestia na lenha equivalia a um apagão.
Ocorre que no início do século passado não existia a figura das reservas florestais públicas e tornar o Estado um fornecedor de lenha criando uma espécie de Lenhobras, não era opção. Só restou a legislador da época criar a figura das reservas florestais dentro dos imóveis rurais privados na tentativa de impedir o afastamento do suprimento de lenha, a matriz energética do país à época, para a além dos limites em que os jumentos poderiam trazê-la até as cidades.
O primeiro Código Florestal virou lei pela pena do governo ditatorial de Getúlio Vargas em 1934. Logo depois, paulatinamente, vieram os caminhões a diesel e as primeiras hidroelétricas. A matriz energética do pais mudou, veio a Petrobras, a lenha perdeu importância e Código Florestal deixou de ser necessário. Ninguém mais ligou pra ele até a década de 60 quando resolveram reformá-lo pela primeira vez.
Um grupo de técnicos coordenados pelo Desembargador Osny Duarte Pereira, comunista como Aldo Rebelo, que havia publicado o livro Direito Florestal Brasileiro, uma análise profunda do Código Florestal de 34 e do direito florestal comparado, reformulou o Código Florestal vigente. Da equipe coordenada por Osny resta hoje um único componente vivo. O engenheiro agrônomo Alceo Magnanini.
Anos atrás, numa manhã fria do inverno carioca, conversei longamente com o Dr. Alceo na sala da casa dele, no Rio, enquanto bebericávamos um fresquíssimo suco de laranja. Ele me contou, entre outras coisas, que o grupo partiu da assunção de que "um percentual de cada bioma teria que ser preservado" e que a demora foi para definir o tal percentual porque o Osny exigia que o número fosse acompanhado de um justificativa técnica e deveria ser aceito por unanimidade no grupo. Acabaram estabelecendo 50% de Reserva Legal na Amazônia porque era uma região que se conhecia pouco, e 20% no resto do país.
Perguntei a ele diretamente se eles haviam pensando na possibilidade de estabelecer tal percentual através de Unidades de Conservação Públicas. Ele tergiversou. Mas pude perceber da conversa como um todo que eles não cogitaram a opção. Me pareceu que eles estavam habituados à figura das reservas privadas, o Dr. Osny gostava dela (assim como Aldo Rebelo também gosta muito em função da admiração que tem por José Bonifácio) e desconfiavam que o Estado não faria tal preservação.
Ao contrário do legislador de 30, o legislador de 60 tinha, como nós hoje temos, a opção de impor a preservação do tal "percentual que precisa ser preservado" em terras públicas, em UCs, mas optou por manter a criatura do legislador de 30, que tinha outro contexto. A história mostrou que a opção das reservas privadas não foi uma opção eficaz, a Mata Atlântica sumiu de lá pra cá. Essa história toda explica porque eu não desabei por completo quando Aldo Rebelo jogou na minha cara a constatação um tanto obvia de que ninguém concorda comigo. Estamos todos habituados ao paradigma, a rodar em torno da moenda.
Eu, como Galileu, Newton depois Einstein, Lavoisier, Darwin, tenho a força de mil exércitos pra brigar sozinho contra um paradigma errado. Não porque eu seja um gênio como eles, mas pela razão simples de que um paradigma errado esboroa sozinho. A forma avassaladora como se deu o atual processo de reforma, depois que ONGs de ecólatras afirmaram por tanto tempo que nossa lei era "uma das melhores leis ambientais do mundo" é uma evidência de fissuras no paradigma que sustenta a preservação em terras privadas.
Mas o documento assinado pelas 11 entidades que representam o setor rural é diferente. O documento em que o setor rural aceita a preservação de florestas em terras privadas equivale a uma rendição oficial. O documento significa que meus generais depuseram as armas. Ele me transforma em uma coisa sem sentido parecida com aquele soldado japonês que permaneceu entrincheirado na ilha de Guam, comendo raízes, dormindo em buracos, vestindo folhas, defendendo a soberania do povo japonês por três décadas depois do fim da guerra, quando todos os derrotados já eram conhecidos e reconhecidos.
Não que tenha sido um erro assinar o documento. Muito pelo contrário. Os ambientalistas do governo, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), abusam do apelo politicamente correto do ato de criar uma UC sobre as terra dos "cães ruralistas do mal" para criá-las de forma irresponsável e inconsequente sobre terras de produtores rurais, gente simples, honesta e trabalhadora. A maioria não tem como se defender do Estado. A pressão para cumprir as metas internacionais apenas através de UCs públicas incandesce o ímpeto e a irresponsabilidade dos ecólatras do MMA. Incluir as florestas preservadas em terras privadas, em RLs e APPs, nas metas reduzirá a pressão pela criação indiscriminada de UCs.
Dadas as circunstâncias, construir e assinar o documento provavelmente foi a melhor decisão que as entidades poderiam ter tomado. Provavelmente será melhor para os produtores rurais se a proposta for aceita. Como disse certa vez o grande filósofo norte americano Tex Antoine, melhor e deitar e aproveitar do que ser currado na marra.
O problema não é o documento e seu conteúdo, tampouco a chancela do setor rural nele. O problema sou eu, minhas convicções e meus princípios. Minha ilha de Guam pessoal, a trincheira contruí pra mim, meu instante de febre, minha gula e jejum, minha biblioteca, minha lavra de ouro, meu terno de vidro, minha incoerência, meu ódio é que me oprimem.
Das mais de 50 audiências públicas que a Comissão Especial da Câmara dos Deputados fez pelo Brasil para debater a reforma do Código Florestal eu participei de uma. Nela ouvi o Deputado Aldo Rebelo dizer, em outros termos, que tinha a convicção de que, no futuro, quando o efeito do crescimento populacional e do desenvolvimento econômico das nações pressionasse o suficiente a demanda por alimentos, o mundo bateria às nossas portas e nos pediria que aumentássemos nossa produção agrícola.
Nesse momento o preço elevado dos alimentos terá excluído dos mercados a fração mais pobre do mundo e as imagens de crianças famélicas sobrepujarão aquelas de geleiras esboroando. Nesse momento, em que a ratazana ideológica de Marina Silva terá sido descortinada e soterrada pelo óbvio, haverá o ambiente político para se discutir a preservação de florestas em terras privadas. Eu acredito nisso.
Mas hoje, com esse debate ridículo sobre vetos absolutos e metragens homogêneas para um país heterogêneo, com as academias de ciência se ocupando de remarcar o paradigma vigente ao invés iluminar suas fissuras, com atores de TV desfazendo com salamaleques o que o parlamento fez de forma democrática, com ONGs internacionais usando raios laser para escrever Brazilian Forest Code, assim mesmo em inglês, nas paredes do Congresso Nacional brasileiro, não há espaço para se discutir o que deveria ser discutido.
Tenho apenas a impressão de que o documento das entidades saiu medroso. Tenho a impressão de que eles poderiam ter sido mais ousados, poderiam ter olhado mais adiante, usado a premência crescente de produzir alimentos em um mundo superpovoado e rico. Poderiam ter deixado uma porta aberta. Bastava incluir um parágrafo dizendo, ok, tudo bem achamos que esse é o melhor caminha agora, entretanto.... Mas são apenas impressões.
Me permitam encerrar contando uma ultima história. Quando a igreja soube que Galileu havia desenvolvido uma teoria que mostrava que a terra se movia e girava em torno do sol convocou-o ao tribunal da santa inquisição. O paradigma vigente era de que a terra não se movia e o sol e tudo mais girava em torno da terra. Estava errado, mas era conveniente à igreja católica porque permitia a separação clara entre o inferno abaixo da terra, o mundano na superfície da terra e o divino no céu, além da terra. A teoria de Galileu bagunçava o esquema simples da igreja.
Os clérigos disseram a Galileu que ele tinha duas opções, poderia ser torturado até a morte não sem antes confessar que sua teoria estava errada, ou poderia negar sua teoria por bem e sair andando pela porta. Galileu negou a teoria, os clérigos o liberaram e voltaram pro seu mundo errado conveniente. Mas reza a lenda que Galileu, ao passar pelos soldados santos que guarneciam a porta, olhou para um deles, sorriu e murmurou "Eppur, si muove". No entanto, se move.
Cedo ou tarde a verdade estará aí na sua porta, rindo na sua cara.
Tex Antoine, a cavalgadura, foi demitido dias depois, mas imortalizou a frase que adquiriu outras formas em diversas partes do mundo. No Brasil, depois de burilada por Paulo Maluf e pela sexóloga Marta Suplicy, a frase foi sintetizada para "Se o estupro é inevitável, relaxa e goza". É um absurdo engraçadinho.
Hoje um grupo de 11 entidades representantes do setor rural, as maiores, a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Abracelpa), Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Associação das Empresas de Biotecnologia na Agricultura e Agroindústria (Agrobio), Associação dos Produtores de Soja e Milho do Matogrosso (Aprosoja), Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), União das Indústrias de Cana de Açúcar (Unica) e União Brasileira de Avicultura (Ubabef), subscreveram e apresentaram um documento à Presidente da República sugerindo a contabilização das florestas em terras privadas, as Reservas Legais e as Áreas de Preservação Permanente previstas no Código Florestal, nas metas internacionais de preservação de biodiversidade assumidas pelo Governo Brasileiro em convenções internacionais.
Apenas as florestas preservadas em unidades de conservação públicas (UCs) e terras indígenas contam para as metas de preservação de biodiversidade assumidas internacionalmente para o Brasil. Apenas o decreto de criação é suficiente, não sendo necessária a implantação de facto da unidade. O papel basta. Isso cria uma pressão para que o Governo crie UCs na base do canetaço, sem aportar recursos para sua efetivação e gerando problemas medonhos para os produtores rurais na área das novas UCs.
Por outro lado, os milhares de hectares de florestas hoje existentes em terras privadas, nas RLs e APPs, a maioria dos quais comporta florestas cuja biodiversidade é tão importante quanto qualquer outra e cuja preservação é obrigatória, não contam como área preservada na meta. O documento das entidades pede ao Governo que inclua as florestas privadas no cômputo de áreas preservadas que compõem a meta brasileira de biodiversidade. A ideia é reduzir a pressão pela criação indiscriminada de UCs ao mesmo tempo em que empresta alguma importância prática às RLs e APPs.
A construção do documento foi articulada pelo pessoal do Icone, um dos signatários, com o auxílio da ONG interacional The Nature Conservancy (TNC). Logo depois que o documento foi divulgado à imprensa, o WWF anunciou a proposta como "uma saída para o Código Florestal". Eis o inusitado: ONGs ambientalistas internacionais e o setor rural unidos em torno de uma proposta. Todo mundo é a favor. Menos eu.
Embora alguns ambientalistas cuspam na minha cara a acusação de trabalhar para ruralista, como se isso fosse imoral, não guerreio essa guerra por soldo. Guerreio por princípios. Dentre eles, talvez o que me seja mais caro, seja a imoralidade, o erro, da imposição da preservação de florestas em terras privadas. Sou convicto de que os benefícios da preservação florestal são grandes demais e baratos demais para serem privados. Preservação de florestas, e suas consequências ambientais, são bens da sociedade que o Estado, por sua natureza, deve prover ao cidadão.
Na minha concepção de mundo APP tem que ter a largura necessária à eficaz preservação do manancial hídrico. Se essa largura inviabilizar o modo de vida de alguém, o Estado deve retirá-lo de lá garantido ao mesmo tempo seus direitos básicos e a preservação da APP; e Reserva Legal tem que ser Zero.
Não estou dizendo com isso que os produtores rurais devam ser autorizados a desmatar suas florestas. Estou dizendo apenas que preservação florestal é função do Estado e que função de produtor rural é produzir da forma mais amigável ao ambiente possível, economizando adubo e defensivos, conservando solo, incrementando tecnologia, maximizando produtividade e minimizando perdas. Esse é o mundo pelo qual luto.
Aldo Rebelo e eu minutos antes das caipiroskas de açai em Belém. |
Era verdade e naquela noite eu me senti meio como hoje, mas permaneci forte porque é natural que o setor rural brasileiro, tendo convivido com códigos florestais que impõem preservação de florestas em terras privadas por quase um século, tenha se habituado ao conceito. É como um boi velho de engenho que depois de aposentado, sai sozinho do pasto todo dia no mesmo horário e vai rodar em volta da moenda. A besta miserável não sabe fazer outra coisa, nunca fez outra coisa na vida. Girar em volta da moenda é a vida.
Ainda no período colonial, José Bonifácio de Andrada e Silva, redigiu uma sugestão aos legisladores da Corôa que estabelecessem no Brasil a figura das reservas privadas ordenando que um sexto de cada sesmaria permanecesse florestado. "Em todas as vendas que se fizerem e sesmarias que se derem se porá a condição, que os donos e sesmeiros reservem para matos e arvoredos a 6ª parte do terreno, que nunca poderá ser derrubada e queimada sem que se fação novas plantações de bosques, para que nunca faltem as lenhas e madeiras necessárias", escreveu Bonifácio nas recomendações que fez à Coroa (Leia a integra do documento original). Embora a sugestão de Bonifácio jamais tenha virado lei, ele é tido como pai da ideia.
Meu ferro a lenha sobre meu exemplar do compêndio Direito Florestal Brasileiro escrito por Osny Duarte Pereira. |
Ocorre que no início do século passado não existia a figura das reservas florestais públicas e tornar o Estado um fornecedor de lenha criando uma espécie de Lenhobras, não era opção. Só restou a legislador da época criar a figura das reservas florestais dentro dos imóveis rurais privados na tentativa de impedir o afastamento do suprimento de lenha, a matriz energética do país à época, para a além dos limites em que os jumentos poderiam trazê-la até as cidades.
O primeiro Código Florestal virou lei pela pena do governo ditatorial de Getúlio Vargas em 1934. Logo depois, paulatinamente, vieram os caminhões a diesel e as primeiras hidroelétricas. A matriz energética do pais mudou, veio a Petrobras, a lenha perdeu importância e Código Florestal deixou de ser necessário. Ninguém mais ligou pra ele até a década de 60 quando resolveram reformá-lo pela primeira vez.
Um grupo de técnicos coordenados pelo Desembargador Osny Duarte Pereira, comunista como Aldo Rebelo, que havia publicado o livro Direito Florestal Brasileiro, uma análise profunda do Código Florestal de 34 e do direito florestal comparado, reformulou o Código Florestal vigente. Da equipe coordenada por Osny resta hoje um único componente vivo. O engenheiro agrônomo Alceo Magnanini.
Anos atrás, numa manhã fria do inverno carioca, conversei longamente com o Dr. Alceo na sala da casa dele, no Rio, enquanto bebericávamos um fresquíssimo suco de laranja. Ele me contou, entre outras coisas, que o grupo partiu da assunção de que "um percentual de cada bioma teria que ser preservado" e que a demora foi para definir o tal percentual porque o Osny exigia que o número fosse acompanhado de um justificativa técnica e deveria ser aceito por unanimidade no grupo. Acabaram estabelecendo 50% de Reserva Legal na Amazônia porque era uma região que se conhecia pouco, e 20% no resto do país.
Eu e o Dr. Alceo Magnanini, o último legislador vivo do Código Florestal de 1965. |
Ao contrário do legislador de 30, o legislador de 60 tinha, como nós hoje temos, a opção de impor a preservação do tal "percentual que precisa ser preservado" em terras públicas, em UCs, mas optou por manter a criatura do legislador de 30, que tinha outro contexto. A história mostrou que a opção das reservas privadas não foi uma opção eficaz, a Mata Atlântica sumiu de lá pra cá. Essa história toda explica porque eu não desabei por completo quando Aldo Rebelo jogou na minha cara a constatação um tanto obvia de que ninguém concorda comigo. Estamos todos habituados ao paradigma, a rodar em torno da moenda.
Eu, como Galileu, Newton depois Einstein, Lavoisier, Darwin, tenho a força de mil exércitos pra brigar sozinho contra um paradigma errado. Não porque eu seja um gênio como eles, mas pela razão simples de que um paradigma errado esboroa sozinho. A forma avassaladora como se deu o atual processo de reforma, depois que ONGs de ecólatras afirmaram por tanto tempo que nossa lei era "uma das melhores leis ambientais do mundo" é uma evidência de fissuras no paradigma que sustenta a preservação em terras privadas.
Mas o documento assinado pelas 11 entidades que representam o setor rural é diferente. O documento em que o setor rural aceita a preservação de florestas em terras privadas equivale a uma rendição oficial. O documento significa que meus generais depuseram as armas. Ele me transforma em uma coisa sem sentido parecida com aquele soldado japonês que permaneceu entrincheirado na ilha de Guam, comendo raízes, dormindo em buracos, vestindo folhas, defendendo a soberania do povo japonês por três décadas depois do fim da guerra, quando todos os derrotados já eram conhecidos e reconhecidos.
Não que tenha sido um erro assinar o documento. Muito pelo contrário. Os ambientalistas do governo, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), abusam do apelo politicamente correto do ato de criar uma UC sobre as terra dos "cães ruralistas do mal" para criá-las de forma irresponsável e inconsequente sobre terras de produtores rurais, gente simples, honesta e trabalhadora. A maioria não tem como se defender do Estado. A pressão para cumprir as metas internacionais apenas através de UCs públicas incandesce o ímpeto e a irresponsabilidade dos ecólatras do MMA. Incluir as florestas preservadas em terras privadas, em RLs e APPs, nas metas reduzirá a pressão pela criação indiscriminada de UCs.
Dadas as circunstâncias, construir e assinar o documento provavelmente foi a melhor decisão que as entidades poderiam ter tomado. Provavelmente será melhor para os produtores rurais se a proposta for aceita. Como disse certa vez o grande filósofo norte americano Tex Antoine, melhor e deitar e aproveitar do que ser currado na marra.
O problema não é o documento e seu conteúdo, tampouco a chancela do setor rural nele. O problema sou eu, minhas convicções e meus princípios. Minha ilha de Guam pessoal, a trincheira contruí pra mim, meu instante de febre, minha gula e jejum, minha biblioteca, minha lavra de ouro, meu terno de vidro, minha incoerência, meu ódio é que me oprimem.
Das mais de 50 audiências públicas que a Comissão Especial da Câmara dos Deputados fez pelo Brasil para debater a reforma do Código Florestal eu participei de uma. Nela ouvi o Deputado Aldo Rebelo dizer, em outros termos, que tinha a convicção de que, no futuro, quando o efeito do crescimento populacional e do desenvolvimento econômico das nações pressionasse o suficiente a demanda por alimentos, o mundo bateria às nossas portas e nos pediria que aumentássemos nossa produção agrícola.
Nesse momento o preço elevado dos alimentos terá excluído dos mercados a fração mais pobre do mundo e as imagens de crianças famélicas sobrepujarão aquelas de geleiras esboroando. Nesse momento, em que a ratazana ideológica de Marina Silva terá sido descortinada e soterrada pelo óbvio, haverá o ambiente político para se discutir a preservação de florestas em terras privadas. Eu acredito nisso.
Mas hoje, com esse debate ridículo sobre vetos absolutos e metragens homogêneas para um país heterogêneo, com as academias de ciência se ocupando de remarcar o paradigma vigente ao invés iluminar suas fissuras, com atores de TV desfazendo com salamaleques o que o parlamento fez de forma democrática, com ONGs internacionais usando raios laser para escrever Brazilian Forest Code, assim mesmo em inglês, nas paredes do Congresso Nacional brasileiro, não há espaço para se discutir o que deveria ser discutido.
Tenho apenas a impressão de que o documento das entidades saiu medroso. Tenho a impressão de que eles poderiam ter sido mais ousados, poderiam ter olhado mais adiante, usado a premência crescente de produzir alimentos em um mundo superpovoado e rico. Poderiam ter deixado uma porta aberta. Bastava incluir um parágrafo dizendo, ok, tudo bem achamos que esse é o melhor caminha agora, entretanto.... Mas são apenas impressões.
Me permitam encerrar contando uma ultima história. Quando a igreja soube que Galileu havia desenvolvido uma teoria que mostrava que a terra se movia e girava em torno do sol convocou-o ao tribunal da santa inquisição. O paradigma vigente era de que a terra não se movia e o sol e tudo mais girava em torno da terra. Estava errado, mas era conveniente à igreja católica porque permitia a separação clara entre o inferno abaixo da terra, o mundano na superfície da terra e o divino no céu, além da terra. A teoria de Galileu bagunçava o esquema simples da igreja.
Os clérigos disseram a Galileu que ele tinha duas opções, poderia ser torturado até a morte não sem antes confessar que sua teoria estava errada, ou poderia negar sua teoria por bem e sair andando pela porta. Galileu negou a teoria, os clérigos o liberaram e voltaram pro seu mundo errado conveniente. Mas reza a lenda que Galileu, ao passar pelos soldados santos que guarneciam a porta, olhou para um deles, sorriu e murmurou "Eppur, si muove". No entanto, se move.
Cedo ou tarde a verdade estará aí na sua porta, rindo na sua cara.
Comentários
Quando vejo notícias de que alguém está preocupado com a imagem do Brasil no exterior na questão Ambiental, fico pensando se é ignorância, falsidade, interesses ocultos ou tudo junto.
Se o Brasil precisa se preocupar com sua imagem é na questão do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH que considera as condições de saúde, educação, qualidade e expectativa de vida e renda da população.
O Brasil se gaba de ser a 5ª. Economia do Planeta, mas está em 84º. lugar no IDH.
Isto sim é uma imagem muito ruim, é uma grande vergonha.
O Brasil tem desenvolvimento humano mais baixo que Jamaica (79º), Bósnia (74º) e Líbano (71º), incluindo nossos vizinhos latino-americanos como o Chile (44º), Argentina (45º), Uruguai (48º) e Cuba (51º).
Infelizmente o Brasil costuma ser campeão em coisas ruins como mortalidade infantil, tráfico de drogas, criminalidade, corrupção, acidentes, impunidade, ineficácia do judiciário, do transporte público e dos serviços públicos, trabalhadores morrendo nas filas do INSS, educação de péssima qualidade, etc. E, não vemos nenhum destes aí preocupados com esta péssima imagem do Brasil no exterior que, por exemplo, afasta turistas e investidores mais sérios.
Aí vem alguns dizer que o Brasil precisa se preocupar com sua imagem na questão ambiental!!!
E oferecem ao mundo, de mão beijada, o sacrifício de nossos agricultores e a renúncia ao desenvolvimento humano, preservando totalmente nossas Matas em prol do Planeta, beneficiando a agricultura dos países desenvolvidos e, pior ainda, sem exigir o Justo Pagamento pelos Serviços Ambientais prestados ao Planeta.
É uma total inversão de valores, punindo os bons e premiando os maus.
Se o Brasil realmente estivesse preocupado com sua imagem, se houvesse um mínimo de ética, estes seriam processados por corrupção e traição da Pátria, pois está óbvio que há interesses particulares, econômicos e estratégicos envolvidos e que alguém está levando vantagem indevida para prejudicar os Brasileiros e beneficiar os países desenvolvidos.
Eu sou urbano, mas vejo notícias de eventos rurais, toda semana, espalhados por todo o país.
Aí vejo imagens dos rurais que comparecem nestes eventos, impressionados, vendo e comprando os produtos.
Mas nunca há manifestações contra a Injusta e Irracional Legislação Ambiental.
Portanto, só posso concluir que eles estão de acordo, e satisfeitos.
Não temos trator e agora a pouco fui até a casa de um produtor aqui perto prá pedir a ele que venha arar uma área onde pretendo plantar forrageiras de inverno amanha.
Ele está trabalhando fora e a mulher dele, uma senhora alemã de forte sotaque me disse que ela mesmo faz o serviço mas que o pneu do trator estava furado.
Lá fui eu com a senhora prá tirar o pneu (dianteiro) e eu mesmo vou levar na borracharia na parte da tarde para que amanha ela venha bem cedinho arar a terra.
Aqui a colonização é tipicamente alemã e no campo as mulheres representam um braço forte que é de se admirar - muito marmanjo da cidade passa vergonha perto delas.
Eu me divirto muito nessa convivência, aprendo muito a cada dia nas conversas entre um chimarrão e outro - é um povo valente e honrado, sei que tu sabes muito bem disso, até mais do que eu.
Só estou te contando esse caso para dizer que não estás sozinho nesta luta. Essa gente vale todo o esforço - estão aqui e em todo lugar, trabalhando de verdade e por isso não tem tempo de acessar internet, facebook, twitter, ou #aprovadima. Sem pessoas honradas, como tu para os defender serão dizimados sem saber de onde veio a praga.
Força amigo!
A partir desse momento, não aceitei nem as árvores que eles iam me dar, porque eu iria perder parte da minha plantação. Disse a eles que isso era um absudo, pois eu que sempre preservei aquela beira de rio, teria a beira da mata acima como referencia para mais 30m, enquanto que outros produtores com gado até na beira do rio perderiam uma faixa bem menor por não ter preservação nenhuma como ponto de partida para uma área úmida.
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