Qualquer ação governamental posterior à crise atual, caso seja desenhada uma estratégia consistente e realista, precisará considerar as tendências principais de transformação hoje em curso nas regiões rurais. De um lado, ampliar ainda mais a extraordinária riqueza que o setor agropecuário vem gerando, estimular a conquista de novos mercados, bem como fomentar a industrialização das matérias primas agrícolas, adensando seu valor agregado. Se assim for, em dez anos, ou até menos, o País se tornará o maior produtor de alimentos do mundo. De outro lado, contudo, a sociedade brasileira precisará decidir sobre a maioria de famílias rurais pobres que está condenada a desaparecer no mesmo período, em face da forte concentração da renda atualmente verificada nas regiões de produção do nosso vasto interior.
Os números são simples de ser expostos. Dos 4,4 milhões de estabelecimentos rurais validados no último levantamento censitário, apenas 500 mil responderam por quase 90% do valor bruto da produção. Dentre estes, apenas 24 mil produziram a metade do valor!
Os demais 3,9 milhões de imóveis resistirão nos próximos anos?
Desse grupo, 2,9 milhões são estabelecimentos rurais onde moram famílias extremamente pobres, com o conjunto familiar retirando apenas meio salário mínimo de rendimento bruto mensal com a agricultura. Vivem, em especial, no Nordeste rural e são famílias envelhecidas que também recebem transferências do Bolsa Família e aposentadorias rurais. Por isso, gradualmente estão abandonando a atividade agrícola própria e passando a comprar seus alimentos, embora continuem morando em áreas rurais.
Sobraria o outro milhão de propriedades, onde vive uma baixa classe média rural, pois sua renda equivale a um salário mínimo mensal por pessoa, considerando a média de quatro moradores por domicílio. Esse grupo se distribui por todas as regiões, embora seja expressivo nos três Estados sulistas.
Esse é o sintético quadro numérico e espacial da realidade rural em nossos dias. Como o censo é de 2006, os dez anos passados acentuaram ainda mais as assimetrias aqui sintetizadas. E sobre esse quadro estrutural vêm predominando duas visões alternativas de interpretação e de ação governamental. Infelizmente, ambas estão erradas.
A primeira e dominante leitura sobre o padrão do nosso desenvolvimento agrário e agrícola é a que argumenta não existir uma solução agrícola para o problema da pobreza rural. Não haveria chance alguma de observar aumentos de renda para os mais pobres em razão de suas atividades agropecuárias. São muito pobres, com terra e recursos de menos e, portanto, seria ocioso insistir em que plantassem ou criassem animais, pois continuarão pobres.
Nenhuma autoridade faz tal afirmação de público, mas, concretamente, é a seguida pelos governos contemporâneos, incluindo o atual. Fingese que algo está sendo feito, mas tacitamente se aceita que o melhor caminho é deixar que as migrações esvaziem o campo e, portanto, em algum tempo, teremos uma poderosa agropecuária, como setor econômico, mas enraizada em regiões rurais com raros agricultores e sem vida social.
Seguindo essa interpretação, conclui-se que as políticas destinadas às propriedades de menor porte econômico têm sido incapazes de integrar maior número aos mercados e gerar renda para uma proporção mais significativa de famílias rurais. São políticas públicas que persistem com o roteiro de décadas atrás, sem se adequarem às exigências de uma agricultura que vem passando por uma revolução tecnológica.
Já a segunda interpretação é bizarra, pois defende a retórica de um tempo remoto e ignora as transformações ocorridas na produção agropecuária. É visão usualmente associada aos setores da esquerda agrária convencional, e insiste em reforma agrária e outros temas antes tão falados. Seu pressuposto é o que afirma ser a causa da pobreza rural a histórica concentração fundiária que prevaleceu desde sempre. Mas se assim foi no passado, à medida que a modernização capitalista veio transformando a economia agrícola, o peso da terra gradualmente se reduziu e não é mais um fator que responda pela pobreza rural. A terra explica hoje apenas 7%-8% do crescimento da produção, enquanto a tecnologia responde por dois terços da expansão verificada. Nas últimas duas a três décadas, a variável que amplia as distâncias sociais e a desigualdade no campo vem sendo, sobretudo, a intensificação tecnológica numa parte dos estabelecimentos rurais, os quais se integraram virtuosamente aos mercados, tanto o interno como o global, apropriandose de proporções crescentes da riqueza gerada. No outro extremo, a vasta maioria dos demais produtores permaneceu à margem do processo de transformação produtiva e, portanto, foi ficando cada vez mais para trás, sem capacidade de concorrer com os imóveis rurais modernizados.
Não obstante a imensa importância econômica da agropecuária, pois é o único setor que vem crescendo positivamente, alavancado por ganhos contínuos de produtividade, não temos tido a capacidade de interpretálo corretamente. O resultado é que as políticas públicas para os mais pobres do campo têm sido erráticas, equivocadas e fora de seu tempo, enquanto a produção agropecuária empresarial continua se expandindo em ritmo e eficiência que impressionam. Já milhões de famílias rurais pobres, encurraladas em face do seu desamparo, parecem estar condenadas à migração para as cidades.
É surpreendente que a sociedade não esteja discutindo o tema e, particularmente, a contribuição potencial da agropecuária para a redução da grave crise que nos aflige. O destino de quase 3 milhões de estabelecimentos rurais pauperizados e seus estimados 12 milhões de estabelecimentos rurais pauperizados e seus estimados 12 milhões de moradores não interessa aos demais brasileiros?
* Zander Navarro e Eliseu Alves são, respectivamente, sociólogo, pesquisador em ciências sociais (z.navarro@uol.com.br) e Doutor em Economia Rural, ex presidente da Embrapa (eliseu.alves@embrapa.br)
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Os números são simples de ser expostos. Dos 4,4 milhões de estabelecimentos rurais validados no último levantamento censitário, apenas 500 mil responderam por quase 90% do valor bruto da produção. Dentre estes, apenas 24 mil produziram a metade do valor!
Os demais 3,9 milhões de imóveis resistirão nos próximos anos?
Desse grupo, 2,9 milhões são estabelecimentos rurais onde moram famílias extremamente pobres, com o conjunto familiar retirando apenas meio salário mínimo de rendimento bruto mensal com a agricultura. Vivem, em especial, no Nordeste rural e são famílias envelhecidas que também recebem transferências do Bolsa Família e aposentadorias rurais. Por isso, gradualmente estão abandonando a atividade agrícola própria e passando a comprar seus alimentos, embora continuem morando em áreas rurais.
Sobraria o outro milhão de propriedades, onde vive uma baixa classe média rural, pois sua renda equivale a um salário mínimo mensal por pessoa, considerando a média de quatro moradores por domicílio. Esse grupo se distribui por todas as regiões, embora seja expressivo nos três Estados sulistas.
Esse é o sintético quadro numérico e espacial da realidade rural em nossos dias. Como o censo é de 2006, os dez anos passados acentuaram ainda mais as assimetrias aqui sintetizadas. E sobre esse quadro estrutural vêm predominando duas visões alternativas de interpretação e de ação governamental. Infelizmente, ambas estão erradas.
A primeira e dominante leitura sobre o padrão do nosso desenvolvimento agrário e agrícola é a que argumenta não existir uma solução agrícola para o problema da pobreza rural. Não haveria chance alguma de observar aumentos de renda para os mais pobres em razão de suas atividades agropecuárias. São muito pobres, com terra e recursos de menos e, portanto, seria ocioso insistir em que plantassem ou criassem animais, pois continuarão pobres.
Nenhuma autoridade faz tal afirmação de público, mas, concretamente, é a seguida pelos governos contemporâneos, incluindo o atual. Fingese que algo está sendo feito, mas tacitamente se aceita que o melhor caminho é deixar que as migrações esvaziem o campo e, portanto, em algum tempo, teremos uma poderosa agropecuária, como setor econômico, mas enraizada em regiões rurais com raros agricultores e sem vida social.
Seguindo essa interpretação, conclui-se que as políticas destinadas às propriedades de menor porte econômico têm sido incapazes de integrar maior número aos mercados e gerar renda para uma proporção mais significativa de famílias rurais. São políticas públicas que persistem com o roteiro de décadas atrás, sem se adequarem às exigências de uma agricultura que vem passando por uma revolução tecnológica.
Já a segunda interpretação é bizarra, pois defende a retórica de um tempo remoto e ignora as transformações ocorridas na produção agropecuária. É visão usualmente associada aos setores da esquerda agrária convencional, e insiste em reforma agrária e outros temas antes tão falados. Seu pressuposto é o que afirma ser a causa da pobreza rural a histórica concentração fundiária que prevaleceu desde sempre. Mas se assim foi no passado, à medida que a modernização capitalista veio transformando a economia agrícola, o peso da terra gradualmente se reduziu e não é mais um fator que responda pela pobreza rural. A terra explica hoje apenas 7%-8% do crescimento da produção, enquanto a tecnologia responde por dois terços da expansão verificada. Nas últimas duas a três décadas, a variável que amplia as distâncias sociais e a desigualdade no campo vem sendo, sobretudo, a intensificação tecnológica numa parte dos estabelecimentos rurais, os quais se integraram virtuosamente aos mercados, tanto o interno como o global, apropriandose de proporções crescentes da riqueza gerada. No outro extremo, a vasta maioria dos demais produtores permaneceu à margem do processo de transformação produtiva e, portanto, foi ficando cada vez mais para trás, sem capacidade de concorrer com os imóveis rurais modernizados.
Não obstante a imensa importância econômica da agropecuária, pois é o único setor que vem crescendo positivamente, alavancado por ganhos contínuos de produtividade, não temos tido a capacidade de interpretálo corretamente. O resultado é que as políticas públicas para os mais pobres do campo têm sido erráticas, equivocadas e fora de seu tempo, enquanto a produção agropecuária empresarial continua se expandindo em ritmo e eficiência que impressionam. Já milhões de famílias rurais pobres, encurraladas em face do seu desamparo, parecem estar condenadas à migração para as cidades.
É surpreendente que a sociedade não esteja discutindo o tema e, particularmente, a contribuição potencial da agropecuária para a redução da grave crise que nos aflige. O destino de quase 3 milhões de estabelecimentos rurais pauperizados e seus estimados 12 milhões de estabelecimentos rurais pauperizados e seus estimados 12 milhões de moradores não interessa aos demais brasileiros?
* Zander Navarro e Eliseu Alves são, respectivamente, sociólogo, pesquisador em ciências sociais (z.navarro@uol.com.br) e Doutor em Economia Rural, ex presidente da Embrapa (eliseu.alves@embrapa.br)
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