É cada vez mais frequente ouvir reivindicações de maior liberdade na hora de interpretar e aplicar a lei por parte de juízes e de membros do Ministério Público. Essas vozes sustentam que uma atuação profissional que ficasse restrita a aplicar a lei em seu sentido literal seria incompatível com o alto papel institucional da Magistratura e do Ministério Público. Nessa visão, a função social da Justiça estaria justamente em assegurar um sentido mais justo e socialmente mais adequado para uma legislação frequentemente frágil e imperfeita, fruto de um Poder Legislativo disfuncional e muitas vezes vulnerável a pressões ilegítimas. Seria indigno, portanto, fechar os olhos às imperfeições da lei e, especialmente depois da Constituição de 1988, à adoção de certos princípios que ampliam os caminhos do Direito além das estreitas margens interpretativas das regras. Ou seja, seria imperativo para juízes e procuradores não se aterem à letra da lei. Sua principal tarefa, dizem, seria desvelar o verdadeiro sentido da norma, oculto a quem simplesmente lê o que diz a lei.
Em muitas áreas do Direito, esse modo particular de entender o papel da Justiça tornou-se majoritário. O fenômeno é visto, por exemplo, na Justiça do Trabalho e em várias atuações do Ministério Público: é o juiz dizendo que não aplicará a reforma trabalhista aprovada pelo Congresso ou promotores que se recusam a reconhecer a vigência do novo Código Florestal, em vigor desde maio de 2012.
Ainda que defendida com belas palavras, essa independência de juízes e promotores em relação à lei é perigosíssima para a democracia, pois coloca em segundo plano a vontade popular manifestada no Legislativo. O poder de legislar já não estaria nas mãos do Congresso, e sim nas dos juízes e membros do Ministério Público. Em última análise, seriam eles a determinar o que é o Direito.
É certo que toda lei, também a Constituição, precisa ser lida, interpretada e aplicada. O problema é que, na visão de alguns juízes e promotores, a interpretação equivale a uma licença para criar. Abandona-se o que está escrito e se atribui um novo sentido, que, segundo a cabeça do juiz ou do promotor, seria mais justo ou socialmente mais adequado. Na prática, tudo ganha contornos acintosamente subjetivos.
Dentro de um Estado Democrático de Direito, no qual o Poder competente para ditar as leis é o Legislativo, composto por pessoas escolhidas pelo voto popular, o ato de interpretar uma lei deve ser tão somente a compreensão de seu conteúdo. É preciso haver um imenso respeito ao que diz a legislação. A rigor, atitudes de menosprezo ou de suspeita em relação à lei aprovada pelo Congresso são manifestações de desprezo à República. E, se não há lei comum, não há democracia, estando aberto o caminho à tirania ou, como supinamente esperam alguns, à aristocracia.
O Congresso tem muitas deficiências e limitações, que dificultam a expressão da vontade popular. Mas do mesmo modo que as carências do Legislativo não são desculpa para a cassação dos parlamentares, elas também não autorizam que o Judiciário ou o Ministério Público desprezem o que lá foi aprovado e inventem outras normas. Caso isso ocorresse, a democracia seria uma farsa. Se os juízes e membros do Ministério Público pudessem dar à lei um sentido diverso ao que diz o texto aprovado, o funcionamento livre do Congresso deixaria de ser sintoma da existência da democracia, pois teria se tornado irrelevante. Nessa hipótese, quem de fato mandaria no País seriam os juízes e os membros do Ministério Público, que não receberam um único voto da população para exercer esse poder político.
A Magistratura e o Ministério Público têm uma alta função social a ser cumprida. Trata-se justamente de defender e aplicar o que a população, por meio de seus representantes no Congresso, deseja que seja lei no País. Quanto mais a Justiça for fiel ao texto da lei, maior será sua legitimidade republicana. E é por isso que um juiz, mesmo sem ter recebido nenhum voto, pode ser a expressão genuína da democracia, quando respeita e faz respeitar a vontade popular, mesmo que ela contrarie suas opiniões pessoais. É dessa isenção que o País precisa.
Editorial de O Estado de São Paulo publicado em 23 de outubro de 2017 com imagem do Pixabay.
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